Empossado em dezembro de 2013 na presidência da AMB, o Juiz João Ricardo dos Santos Costa se viu como uma das principais vozes da Magistratura no ano em que se completam 50 anos do Golpe que cassaria juízes e interferiria nos Tribunais.
Décadas mais tarde, a redemocratização imporia grandes dilemas para Costa e os juízes de sua geração. Que contornos institucionais buscar para o judiciário, agora que não há amarras autoritárias? Como dar conta da infinidade de demandas que emergiram ou se intensificaram após a promulgação da Constituição de 1988? Como interpretar e aplicar adequadamente os termos da nova ordem jurídica trazida pela Carta em temas sensíveis como a lei da anistia?
Nesta entrevista à Carta Maior, Costa discute algumas dessas questões e fala sobre os principais desafios para os juízes e o judiciário frente às imperfeições de nossa transição democrática.
Carta Maior: Gostaria de começar com uma questão mais geral. Qual a visão da magistratura e especialmente do movimento associativo, hoje liderado por você, sobre a transição para a democracia?
João Ricardo: Percebemos que é um processo incompleto. Conseguimos avanços na estrutura institucional, mas ainda temos práticas que devem ser abolidas. São práticas que possibilitam o loteamento do Estado por entidades privadas, a vulnerabilidade dos mandatos parlamentares e a consequente crise de representação que, inclusive, hoje dá ensejo a demandas pro reforma política. Isso ainda me parece um resquício do regime militar, o funcionamento do Estado sem equilíbrio de forças, que é o que caracteriza a plenitude da democracia e do funcionamento das instituições representativas.
No judiciário ainda temos um resquício de ditadura que é a falta de democratização dos tribunais, tema de campanhas nossas. 15% dos membros do judiciário escolhem as administrações dos Tribunais e não é por outra razão que os Tribunais retêm a maior parte do orçamento do judiciário, ficando os juízes de primeiro grau em segundo plano. E isso também cria um problema para a democracia, porque a demanda popular por justiça dá entrada na primeira instância, aquele é o juiz que escuta e que processa essa demanda para orientar a intervenção do judiciário.
Carta Maior: A despeito dessas dificuldades que existem no judiciário, qual o papel que você vê para esse poder na democratização do país?
João Ricardo: Ainda que, como eu disse, o judiciário precisa ser fortalecido e democratizado, seu papel é fundamental. O regime militar teve grande sucesso em frear o desenvolvimento da educação cidadã e da consciência social no país. Os governos democráticos têm tido imenso esforço para reverter isso e consolidar no país um sistema de informação melhor.
A educação no Brasil é bastante deficiente e a mídia é completamente monopolizada. Isso faz com que não haja pluralidade de informação e que os debates públicos sejam desinformados. O judiciário opera nesse contexto, de uma sociedade desinformada ou pouco informada. Então quando vamos trabalhar uma política pública que interessa ao judiciário, como a política penitenciária, o apelo é para prender, ainda que já tenhamos mais de 550 pessoas presas. Quando tratamos do problema da infância e juventude, o apelo popular é reduzir a maioridade penal, o que jogaria mais 100 ou 200 mil adolescentes dentro de um sistema completamente inviável. Tudo isso faz parte do legado da ditadura.
Carta Maior: Mas você está falando de questões amplas e complexas e me vem à mente a afirmação de Hamilton, de que o judiciário é o mais fraco dos poderes, pois não possui nem a bolsa nem a espada, ou seja, nem os poderes orçamentários do Legislativo nem os poderes coercitivos do Executivo. O que os juízes podem fazer diante desses desafios para a nossa democratização?
João Ricardo: Em primeiro lugar, temos que dialogar com os demais poderes e com a sociedade e mostrar que em várias frentes a solução passa por políticas afirmativas de direitos. No âmbito mais específico da resolução de litígios, no qual os magistrados operam, estamos propondo maior investimento em medidas alternativas – tanto na esfera civil, quanto na esfera penal –, como mediação, conciliação e, especialmente, justiça restaurativa.
Também estamos demandando que o Conselho Nacional de Justiça elabore uma política para dar maior efetividade à atuação do judiciário. Hoje o Conselho deixa muito a desejar em relação a isso. O Conselho não é capaz, por exemplo, de evitar o uso predatório da justiça, dialogando com agências reguladoras e à própria Fazenda Pública, que muitas vezes demanda a justiça para postergar o reconhecimento e a efetivação de direitos. Bancos, telefônicas, empresas de energia, planos de saúde são grandes responsáveis pela litigância no Brasil e, como órgão de coordenação do sistema de justiça, cabe ao CNJ atuar diante disso.
O problema do judiciário não envolve apenas o funcionamento Tribunais, mas também da excessiva produção de alguns litígios, por um lado, e a dificuldade de ingresso de outros litígios, por outro – os quais, quando ingressam, ingressam de forma atomizada, quando poderiam ser tratados no âmbito de ações coletivas, por exemplo.
Carta Maior: Um tema que é bastante sensível para nós neste balanço é a lei da anistia. Sabemos que há muitas ações que tramitaram e tramitam ainda na justiça, envolvendo demandas por responsabilização de agentes. Os juízes, porém, e o próprio STF, têm sido refratários a essa possibilidade. Como você avalia esse quadro?
João Ricardo: Houve uma mudança na composição do STF desde aquela decisão. É um assunto que pode e deve ser trazido à discussão novamente. A sociedade brasileira precisa virar essa página. Embora haja todo um investimento na produção do esquecimento, hoje é possível perceber o quão danoso ele é. Hoje alguns querem reeditar a Marcha da Família com Deus pela liberdade e eu cheguei a ouvir declarações dos participantes que mostravam um nítido desconhecimento do que realmente ocorreu e de que maneira sofremos até hoje as consequências do que realmente ocorreu a partir daquele evento.
Diante disso, parece-me que o Judiciário tem um papel a cumprir. No momento em que rever a lei da anistia, vai indicar que expedientes que rompem com o estado democrático de direito não podem ser admitidos e que o direito não deixará esquecer as maldades que foram feitas contra a sociedade brasileira. Acho que teria esse simbolismo, como outras experiências mostraram.
Sobre o entrevistado
João Ricardo dos Santos Costa é atual presidente da AMB. Antes, foi titular do 1º Juizado da 16ª Vara Cível de Porto Alegre e professor de Direitos Humanos da Escola Superior da Magistratura.
Foi presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) e ocupou a Vice-Presidência de Direitos Humanos da AMB de 2008 a 2010.
Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (PUCRS), em 1984, com pós-graduação em Direito (Unisinos, 2001), ingressou na Magistratura em agosto de 1990. Atuou nas Comarcas de Planalto, Taquari e Canoas.
Fonte: Carta Maior