Associação dos Magistrados do Estado de Goiás

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“A corrupção corre solta por falta de freios políticos, morais e legais”

Um dos grandes nomes da atualidade no Direito Penal no Brasil e palestrante no 12° Congresso Goiano da Magistratura, o juiz em segundo grau do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) Guilherme de Souza Nucci classifica como “sofrível” a efetividade do garantismo, por falta de estrutura do Estado. Sua palestra, com o tema “Efetividade e Garantismo no Contexto da Corrupção”, foi um dos pontos altos do evento, que recebeu, nos dias 31 de outubro e 1º de novembro, aproximadamente 700 congressistas. O congresso foi promovido pela Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (ASMEGO), em parceria com a Escola Superior da Magistratura de Goiás (Esmeg). Doutor em Direito Processual Penal e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o magistrado ressalta, em entrevista ao portal da ASMEGO, que “a corrupção corre solta por falta de freios políticos, morais e legais.” “Não se exclui o corrupto da sociedade, mas, ao contrário, muitos o valorizam, pois é ‘esperto’ e sabe ‘enriquecer’”, afirma Nucci. Leia, a seguir, a íntegra da entrevista.


ASMEGO - Quais são as principais ameaças à proteção dos direitos fundamentais no País?


GUILHERME NUCCI - Os direitos fundamentais são variados, abrangendo desde vida e liberdade, passando pela propriedade até chegar à segurança. Por isso, o crime é uma ameaça aos direitos fundamentais, mas o próprio Estado contribui com outra parcela. Afinal, garantir segurança ao cidadão constitui, basicamente, dever estatal. Para tanto, é fundamental combater o crime com eficiência. Se assim for feito, desde a investigação criminal, passando pelo processo até atingir a execução penal, os direitos fundamentais estarão mais seguros. Em suma, na esfera do Direito Penal, dois fatores ameaçam os direitos essenciais: o crime e o Estado, que não o pune satisfatoriamente.


ASMEGO - Se, por um lado, as garantias previstas na Constituição podem impedir o arbítrio estatal, elas também são interpretadas, por outro lado, apenas como ferramenta destinada a beneficiar o réu em um julgamento. Como equilibrar essas percepções distintas?


GUILHERME NUCCI - A própria indagação é a chave da resposta: equilíbrio. Inexiste direito absoluto. Se houvesse, não haveria prisão cautelar, pois todo acusado é presumidamente inocente até o trânsito em julgado de sentença condenatória; prender um inocente parece contraditório. Mas não é, na medida em que a presunção de inocência, garantia fundamental, não é absoluta. Se também há interesse da sociedade na segurança e no processo lícito, é importante preservá-los, mesmo que à custa do cerceamento da liberdade individual de alguém.


ASMEGO - Quais são os maiores equívocos que, muitas vezes, levam à incompreensão do garantismo?


GUILHERME NUCCI - O garantismo é confundindo com excesso de direitos a criminosos, tal como um escudo protetor, que gera impunidade. Nada disso. É apenas um sistema de garantias, que merece ser observado para qualquer réu, inclusive para dar legitimidade e força punitiva ao Estado, quando houver condenação.


ASMEGO - O crescente acúmulo de processos sem resposta faz aumentar a crítica sobre a morosidade do Judiciário, sobretudo em regiões mais castigadas pelo déficit de magistrados. Além disso, as partes de uma ação têm o direito de recorrer das decisões, o que, geralmente, acarreta em mais demora, até que haja o trânsito em julgado. De que forma essa questão processual contribui para a distorção do que de fato é garantismo?


GUILHERME NUCCI - Pode distorcer na exata medida da ignorância do que vem a ser garantismo. Esse sistema não é o culpado pela morosidade do Judiciário e muito menos pela imensa falta de juízes. Além disso, o direito ao recurso também não deveria ser considerado o vilão da morosidade. Na minha visão, o sistema é desorganizado. Há muitos recursos previstos em lei para poucos juízes em atividade em todos os tribunais, inclusive no STF. É preciso uma reforma recursal adaptando-se a nossa realidade do Poder Judiciário à quantidade de recursos viáveis. Quanto mais recursos, mais magistrados serão imperiosamente captados.


ASMEGO - Em que medida o garantismo pode colaborar ou atrapalhar o combate à corrupção no Brasil?


GUILHERME NUCCI - Não atrapalha em absolutamente nada. A corrupção corre solta por falta de freios políticos, morais e legais. Não se exclui o corrupto da sociedade, mas, ao contrário, muitos o valorizam, pois é "esperto" e sabe "enriquecer". O materialismo das pessoas ganha contornos penais na medida em que se cultua a corrupção como conduta de pessoas "inteligentes". A par disso, é preciso cortar a ação do corrupto em vários planos. Puni-lo criminalmente, processá-lo civilmente, para devolver o que não lhe pertencia, cultuar o padrão antiético para classificar a corrupção, enfim, alterar o ponto de vista da sociedade no tocante a esse desvio de conduta tão grave.


ASMEGO - Na sua avaliação, em síntese, como o garantismo se reflete, na prática, no julgamento dos réus do mensalão, em detrimento do clamor popular e midiático?


GUILHERME NUCCI - Não vejo nenhuma relação. O STF cumpriu todas as exigências legais, proporcionou aos réus todos os direitos fundamentais de defesa e não se deixou levar pelo clamor popular.


ASMEGO - Em linhas gerais, qual é o grau da efetividade do garantismo no contexto da legislação brasileira?


GUILHERME NUCCI - O grau de efetividade do garantismo ainda é sofrível, por falta de estrutura do Estado. Há poucos defensores públicos, o sistema carcerário é inoperante, delegados não são valorizados, juízes e promotores sentem-se ameaçados; enfim, o problema é de governo, e não de sistema.


ASMEGO - Existe relação entre garantismo e legalismo ou formalismo?


GUILHERME NUCCI - O garantismo cultua a legalidade. Por vezes, esta é desenvolvida de maneira formal, inclusive para conferir real garantia ao indivíduo.


ASMEGO - Qual é o principal gargalo do Judiciário brasileiro?


GUILHERME NUCCI - Falta de verbas suficientes no seu orçamento, mais carência administrativa da sua máquina, mais número insuficiente de magistrados e servidores, que resulta no enorme funil formado aos processos que tramitam.