Em artigo publicado no jornal O Popular deste sábado, a juíza Sirley Martins da Costa, da 1ª Vara de Família e Sucessões de Goiânia, aborda a falta de informação sobre a lei que dispõe sobre internação compulsória e os equívocos observados nos pedidos endereçados ao Poder Judiciário.
O tema será objeto de discussão, no próximo dia 22 de março, às 19 horas, no auditório do Ministério Público, em mais uma edição da mesa de debates, que conta com o apoio da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (ASMEGO).
Confira o artigo.
A lei e a internação compulsória
Muitos pedidos de internação compulsória apresentados ao Judiciário, nos últimos meses, quase sempre em razão da dependência do crack, têm se mostrado desnecessários. Outro equívoco que se percebe é a acumulação dos pedidos de internação com a interdição por incapacidade, quando há familiar para assumir a curatela e pedir a internação.
A questão da internação do paciente acometido de transtorno mental é regida pela Lei 10.216/2001, que representou um marco no processo de valorização da vontade do paciente, mesmo tendo reconhecido que, momentaneamente, a expressão da vontade pode não ser possível. Prevê o parágrafo único do artigo 6º da mencionada Lei que há três tipos de internação psiquiátrica: 1)-voluntária, solicitada pelo paciente; 2)- involuntária, pedida por terceiro; e 3)-compulsória, “aquela determinada pela Justiça”. Obviamente, a necessidade de internação, em qualquer modalidade, será sempre avaliada por médico.
A lei citada acima afirma que a internação involuntária pode ser pedida por “terceiro”. Penso que as pessoas habilitadas a formularem o requerimento são, por analogia, as mesmas previstas no Art. 1.768 do CC, a saber: pais ou tutores, cônjuge (ou companheiro), ou por qualquer parente.
Sem adentrar na questão de haver ou não um problema epidêmico relativo ao uso do crack, o certo é que para que haja a internação involuntária, basta que um familiar formule o requerimento na unidade hospitalar e que o médico a autorize (Art. 8º da Lei 10.216/2001).
Quando o pedido de internação for feito por terceiro, entendido como tal o familiar, o requerimento deve ser administrativo e apresentado diretamente no estabelecimento de internação, ou no centro de regulação, no caso do Sistema Único de Saúde (SUS). Não há necessidade de intervenção Judicial ou do Ministério Público para que haja a internação involuntária. Apenas é preciso que o estabelecimento hospitalar comunique ao Ministério Público, em 72 horas, na forma da referida lei.
A internação compulsória está prevista na lei para aplicação naquelas situações em que há necessidade de intervenção estatal (questão de saúde pública), mas não há solicitação de familiar para a internação. Nestes casos, tanto o Ministério Público quanto o setor próprio da área de saúde pública podem formular ao Judiciário o pedido de internação compulsória do paciente.
O pedido de internação compulsória deve ser direcionado ao Juiz da Vara de Família, pois o fundamento do pedido é o fato de o usuário de substância entorpecente estar impossibilitado, momentaneamente, de decidir acerca do próprio interesse, no caso sua saúde. De qualquer forma, a medida, deferida em caráter emergencial e temporária, deve preceder de manifestação do Ministério Público e será sempre deferida no intuito de proteger o interesse do usuário. O magistrado jamais deve fixar o tempo da internação, pois caberá ao especialista responsável pelo tratamento decidir sobre o término da internação (§ 2º do Art. 8º).
A internação (involuntária ou compulsória) deve ser mais breve possível, pois, o quanto antes, o paciente deve ser formalmente cientificado dos direitos previstos no parágrafo único do Art. 2º da Lei 10.216/2001, mormente o direito previsto no inciso V: “ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária.”
A internação (involuntária ou compulsória) não deve estar atrelada à interdição, pois esta é medida muito mais drástica que a internação. Somente se cuida de interdição quando constatado que o tratamento foi ineficaz e que a dependência química resultou em incapacidade para os atos da vida civil. Aliás, prevê o artigo 4º, II do CC, que os viciados em tóxicos são “incapazes relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer”. Logo, em caso de declaração da incapacidade devido à dependência química, a sentença deve especificar os limites da incapacidade.
Muitos pedidos de internação, visam, na verdade, a entrada dos pacientes em estabelecimentos hospitalares, por força de ordem judicial, sem observância à regulação do SUS. De fato, em vários Estados da Federação a falta de vagas no Sistema Único de Saúde é problema que agrava ainda mais a situação do usuário de substâncias entorpecentes.
Contudo, o problema não pode ser enfrentado com pedido judicial de internação compulsória, que visa quase sempre desrespeitar a regulação do SUS. É necessário tomar cuidado para não se desvirtuar o foco de enfrentamento do problema.
Pode-se argumentar que a intervenção judicial se faz necessária para o uso de força quando o paciente resistir à internação. Contudo, uma vez autorizada a internação (involuntária ou compulsória), cabe ao SUS providenciar a entrada do paciente no hospital, o que, por certo, deve ser feito com atuação dos agentes do SAMU. Tais providências são de saúde pública e não exigem atuação do Poder Judiciário.
O Ministério Público pode buscar o enfrentamento do problema público relativo à falta de vagas e regulamentação de ações no SUS, por meio de ajustamento de condutas ou proposituras de ações para obrigar o poder público (SUS) a regulamentar a internação e a oferta das vagas necessárias. O tema é polêmico por entrar na esfera de deliberação administrativa do executivo, questão esta que não vou aqui tratar.
Se a medida judicial busca tratar da obrigação estatal de fornecer tratamento médico, a causa de pedir é outra e, neste caso, a competência para julgamento é do juízo das fazendas públicas, estadual, municipal, ou mesmo da Justiça Federal, dependendo da situação.
A falta de informação acerca das disposições previstas nas normas pode estar dificultando o enfrentamento do problema, até mesmo porque são muitas as Portarias do Ministério da Saúde a cuidar do tema, gerando um verdadeiro emaranhado. Deste modo, acredito que se faz necessário, e mais que urgente, o lançamento de uma cartilha explicativa, tratando, dentre outros, dos seguintes pontos: locais onde se deve buscar tratamento (capital e interior), pessoas habilitadas a fazê-lo, tipos de internação, procedimento a ser adotado pela instituição hospitalar quando das internações, direitos dos pacientes e familiares, pois além dos direitos aqui mencionados há vários outros descritos na Portaria 3.088/2011 do Ministério da Saúde, a qual faz referência a todas as normas relativas ao enfrentamento do transtorno mental por uso de substância entorpecente.
Sirlei Martins da Costa é juíza de Direito da 1ª Vara de Família e Sucessões de Goiânia (