Associação dos Magistrados do Estado de Goiás

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Ao jornal O Popular, juiz diz que vítimas são constantemente intimidadas e ameaçadas


O juiz goiano Rinaldo Aparecido Barros, integrante do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em entrevista ao jornal O Popular nesta segunda-feira, fala sobre o avanço do tráfico de pessoas em Goiás. Nos últimos 17 meses, 80 goianas foram vítimas dessa modalidade de crime, segundo dados da Secretaria Estadual de Políticas para Mulheres e Promoção da Igualdade Racial (Semira).


“A estimativa representa 57% do total de 140 casos investigados pela Polícia Federal em Goiás, na última década, período em que o Estado liderou o número de ocorrências no País”, destaca a reportagem. De acordo com o magistrado, “há uma intimidação e ameaça constante das vítimas. O sistema de justiça brasileiro ainda não está preparado para garantir confiança às vítimas, para se sentirem seguras e denunciarem os traficantes”, afirma o juiz.


Leia a íntegra da reportagem publicada pelo jornal O Popular.


Tráfico de pessoas


80 vítimas goianas em 17 meses


Número de casos no Estado já chega a 57% do total de ocorrências registradas pela PF em dez anos





A passos lentos, a dona de casa Iraci Pereira Teixeira, de 67 anos, caminha até a sepultura da filha Fabiana Pereira Teixeira, de 37, dentro do Cemitério Parque, na Região Norte de Goiânia. A caçula foi morar em Portugal em 2009 e voltou à capital, em setembro do ano passado, direto para o túmulo. Ela é uma das 80 goianas vítimas de tráfico de pessoas, nos últimos 17 meses, de acordo com a Secretaria Estadual de Políticas para Mulheres e Promoção da Igualdade Racial (Semira). A estimativa representa 57% do total de 140 casos investigados pela Polícia Federal, em Goiás, na última década, período em que o Estado liderou o número de ocorrências no País (veja quadro).


Entre maio de 2012, mês de criação do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas em Goiás, e outubro deste ano, os criminosos submeteram 30 goianas a trabalho em condições análogas à escravidão e outras 50 caíram no submundo da exploração sexual, aponta a Semira. Deste total, três mulheres foram identificadas em operação da Polícia Federal, na Espanha.


Travestis, com faixa etária entre 35 e 46anos, e mulheres, de 19 a 35 anos, são os que mais caem na armadilha, de acordo com o coordenador do núcleo da Semira, Valdir Monteiro. “Os travestis têm um agravante, porque são rejeitados pela família e discriminados pela sociedade. Então, os aliciadores fazem um monte de promessas e as vítimas caem no falso acolhimento”, comenta ele.


Com a voz embargada, Iraci conta que não sabe qual era a ocupação da filha na Europa. “Ela ligava, geralmente, uma vez por mês. Não contava nada nem fazia reclamação”, lamenta a dona de casa, em frente ao túmulo de Fabiana. “A maioria das vítimas sabe o que vai fazer lá fora, mas não conhece as condições em que vai ter de realizar o serviço”, explica o coordenador do núcleo.


LABIRINTO CRIMINOSO


Goiás também é destino, principalmente, de travestis que saem da Região Nordeste do País. No Estado, a exploração sexual seria comandada por dois travestis. Segundo Monteiro, Linda Welsh (Lindomar Fidelis Miranda), de 42 anos, chefiaria a prática criminosa em Goiânia. Ele foi preso em outubro do ano passado, por suposto aliciamento e exploração sexual de vulneráveis e rufianismo (tirar proveito da prostituição alheia), desde 2009. Érika (Josyel Paulista Vieira), de 32, é apontado como o agenciador que atuaria em Anápolis.


Apesar de os dois suspeitos serem investigados, eles não permanecem presos, devido à dificuldade de juntar provas e relatos de testemunhas. “Há uma intimidação e ameaça constante das vítimas. O sistema de justiça brasileiro ainda não está preparado para garantir confiança às vítimas, para se sentirem seguras e denunciarem os traficantes”, diz o juiz de Goiás Rinaldo Aparecido Barros, integrante do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).


Das 80 vítimas notificadas pela Semira, muitas sobreviveram, depois de serem resgatadas. Fabiana não teve uma segunda chance. Deixou dois filhos, hoje com 21 e 16 anos de idade, cinco irmãos e a mãe.


Rede criminosa cria várias dívidas


Depois de caírem na armadilha dos criminosos, as vítimas do tráfico de pessoas também são extorquidas pela máfia, em Goiás. Relatos colhidos pelo Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da Secretaria Estadual de Políticas para Mulheres e Promoção da Igualdade Racial (Semira) mostram que, além de ser exploradas, elas têm de pagar dívidas definidas pela organização criminosa. “Pagam 35 reais para ficar durante o dia na rua e mais 35 reais”, diz o coordenador do núcleo do Estado, Valdir Monteiro.


O valor da dívida cresce à medida que as vítimas se afundam ainda mais no esquema. Inicialmente, os traficantes cobram R$ 3 mil delas para aplicação de silicone. “As vítimas recebem silicone industrial. É muito comum ver o silicone vazar e elas usarem cola na pele”, relata Monteiro, que já atuou em diversas operações de resgate de vítimas em Goiás.


Ele conta que os criminosos monitoram toda a dívida que fazem as vítimas contraírem. “Nas operações, sempre apreendemos também algum caderno com lista de valor que cada uma delas está devendo”, ressalta.


INDENIZAÇÃO


Presidente da Comissão de Segurança Pública e Política Criminal da Ordem dos Advogados do Brasil em Goiás, Rodrigo Lustosa destaca que as vítimas da rede do tráfico têm direito a indenizações. Ele acrescenta que os prejuízos não são apenas de ordem econômica, “incluem danos morais, à honra e à imagem.”


O procurador da República em Goiás Daniel de Resende Salgado, secretário de pesquisa e análise do gabinete do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, aponta que houve 50 denunciados pelo crime no Estado, entre 2008 e 2012, mas só um foi condenado.


Travestis assassinados em Anápolis


O tráfico de pessoas determina a morte como punição para as vítimas que derem informações sobre o esquema criminoso. Dois travestis foram assassinados, em abril, em Anápolis, depois de se encontrarem com equipes de investigação do Estado. Os dois eram do Pará, um dos Estados de origem de pessoas que têm Goiás como o principal destino.


Exploração no Entorno do DF


Três adolescentes foram vítimas de tráfico interno de pessoas, para fins de exploração sexual, em Luziânia e Águas Lindas, no Entorno do Distrito Federal. Elas tinham 14, 13 e 12 anos de idade, estavam submetidas à rede criminosa em Goiás e foram identificadas durante operações do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Estado, depois de denúncias. A mais velha foi a última resgatada, no mês passado. Para a equipe do núcleo estadual, há pessoas por trás da exploração das adolescentes, que foram encaminhadas, à época, ao Conselho Tutelar. Assim como as demais vítimas, elas não deram muitas informações sobre quem eram os exploradores.


“Deve haver cumprimento efetivo da pena”


O Estado deve criar mecanismos de persecução financeira dos criminosos, na avaliação do procurador da República Daniel de Resende Salgado. Em entrevista por e-mail ao POPULAR, ele defende o aumento de ações repressivas, em vez do endurecimento da pena dos traficantes.


O que faz, na avaliação do senhor, o Estado assumir uma das posições de destaque deste tipo de crime no País? É apenas a questão geográfica?


A questão geográfica é um fator. Outro fator é a herança migratória do Estado. Também podem ser considerados aspectos referentes à vulnerabilidade social, laboral e familiar das vítimas que, a partir de faltas de perspectivas em território nacional, passam a ter um projeto migratório, do qual o traficante se aproveita. Entretanto, na realidade, podemos concluir que Goiás não é o local onde há mais tráfico, mas o local onde o tráfico saiu da invisibilidade, em face da atuação dos órgãos de enfrentamento ao crime.


O que é preciso para que tenhamos estimativas mais próximas da realidade, a fim de sabermos o número de vítimas e de criminosos envolvidos?


É preciso que os eixos de enfrentamento ao tráfico humano, repressivo, preventivo ou de atenção à vítima, dialoguem mais e de maneira mais uniforme. É necessária também uma definição precisa do que é considerado tráfico humano.


Deve haver o endurecimento da pena para os criminosos?


A pena é suficiente e proporcional. Por outro lado, a fórmula do endurecimento penal, em alguns aspectos, está esgotada. Alguns pontos dentro do eixo repressivo devem ser intensificados, como a persecução financeira dos criminosos, uma vez que a movimentação patrimonial, segundo dados, é intensa. As organizações criminosas especializadas em tráfico humano precisam ser sufocadas financeiramente. Deve haver o efetivo e total cumprimento da pena aplicada. Se não bastasse a lenta tramitação dos processos, o sentenciado não cumpre a totalidade da pena. Também deve-se ampliar o tipo penal para prever a hipótese de tráfico a fim de exploração laboral, com o escopo de alinhar o marco penal brasileiro ao Protocolo Adicional à Convenção de Palermo.