Associação dos Magistrados do Estado de Goiás

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Diretor da ASMEGO publica crônica com passeio pela música brasileira


Uma crônica em torno do tema do papel masculino na Música Popular Brasileira. Essa é a mais nova e criativa abordagem do diretor cultural da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (ASMEGO), desembargador Itaney Francisco Campos. Em uma crônica pra lá de recheada de histórias, exemplos e citações, o magistrado apresenta um discurso que é um verdadeiro passeio por diversas obras musicais do País do samba. Leia na íntegra:


HOMEM, O OPRESSOR OPRIMIDO, NA LINGUAGEM DO SAMBA


Por Itaney Francisco Campos


Que a mulher é musa onipresente no imaginário do cancioneiro brasileiro, fonte de toda alegria e, sobretudo, de sofrimento, é fato sabido e ressabido. Na verdade há um endeusamento perigoso da figura feminina. E digo perigoso porque a idealização, válida na literatura, pode refletir uma conduta social que, na verdade, nega a mulher real e a substitui por uma figura utópica, dotada de qualidades e virtudes distintas do ser efetivo. É notório o denso romantismo impregnado na canção brasileira. E mais do que isso, como o ouvinte, ainda o menos atento poderá perceber, o poeta popular, não se conformando em exaltar a figura feminina, adota, por vezes, a estratégia de nominá-la, identificá-la, buscando dar-lhe uma conformação verossímel e imprimindo-lhe um perfil psicológico que a diferencie das demais mulheres que, ao longo dos anos, vem figurando no mundo utópico da canção. Em alguns casos, como na valsa Rosa, de Pixinguinha, letra de Otávio de Souza, o letrista de uma música só, o perfil da mulher, de tão elaborado, na tentativa de alçá-la aos cumes da poesia, reveste-se das características do barroco, pra não dizer do rococó, em termos de letra. “És láctea estrela, és mãe da realeza…”. É a suprema forma de beleza, para o compositor.


No panorama musical brasílico desfilam as mais variadas Marias, louvadas, sobretudo, por seus atributos físicos, sua malícia e seu poder de sedução. É certo que há as Marias menos recomendáveis, alvo de ironias, como Maria Candelária, alta funcionária pública, cuja jornada se iniciava ao meio dia, interrompida com uma ida ao dentista, depois ao modista e, após, ao café; em seguida, Maria batia o ponto e dava no pé. O estribilho é irônico: Coitada da Maria, trabalha de fazer dó!!! Sob o sarcasmo da letra, palpitava uma lição de moralismo, de crítica ao funcionalismo publico; Nessa época, meados de 50, quando o capitalismo se firmava no Brasil, a canção reproduzia o senso comum de exigência de eficiência do Estado. Nessa linha, Maria Escandalosa, criticava com humor a mulher “gostosa, cheia de prosa e mentirosa; na escola não dava bola e só aprendia o que não era da lição”. E ao tempo em que crescia, - diz a letra - o seu juízo encolhia. O Carnaval abusou desse repertório critico da conduta feminina. Mas, no geral, a mulher seduzia e reinava, como Dora, rainha do frevo e do maracatu; Helena, que só ficara por poesia e dava o corpo por nada; as ingênuas Irene, a que ria e prendia o povo em sua risada, e Luciana, com seu sorriso de menina nos lábios de mel; Em sentido oposto, prenunciando novos tempos, menos ingênuos e românticos, o compositor popular – diga-se Chico Buarque - exibiu à platéia a libertina Ana, a de Amsterdã, a do lixo, dos bichos, das bichas, das loucas; a Ana de Cabo a tenente, de toda a patente das Índias. E o que dizer da doce Iracema,da América; ou de Beatriz, a divina, a do cenário e da casa da atriz, escondida no sétimo céu? Aurélia, Candinha, Chiquita, Carolina e Januária, ah, Januária, esta que atraía até as ondas mar, ao se entregar à lua cheia..


Mas, perdoa-me o leitor, estou desviando de assunto, o que quero observar é que, com alguma frequência, a figura masculina também se presta como fonte de inspiração ao compositor popular. Do homem não se alardeiam, naturalmente, os atributos físicos, sua verve sedutora, sua intuição, mas sim a sua ginga, sua esperteza, sua condição social e até a malandragem e o descompromisso com as convenções, comportamentos estes que, durante algum tempo, foram valorizados como qualidades, porque opostas aos padrões do sistema social. O boêmio, avesso ao trabalho, era exaltado na arte brasileira. Assim é que o grande Noel Rosa já falava, com humor melancólico e irônico, do personagem João Ninguém, tão comum nas grandes cidades, uma figura inexpressiva, anônima, que não era velho e nem moço, que se via na contingência de comer muito no almoço, pra se esquecer do jantar. Apesar de não trabalhar, vivia a fumar charuto, possivelmente restos jogados no corredor do edifício. João Ninguém morava no vão de uma escadaria - anota o poeta - indiferente à gritaria advinda do primeiro andar. Apático, João nunca se expôs ao perigo, por isso, nunca teve um inimigo, mas também nunca teve opinião. Em contraponto, o compositor Chico Buarque criou a figura do Juca, aquele seresteiro infeliz que, no meio de uma serenata, foi autuado em flagrante, como meliante, pois sambava bem diante da janela de Maria. E em legítima defesa, na frente do Delegado, argumentava que a autoridade era bamba, na Delegacia, mas que nunca fizera samba e também nunca vira Maria. Noel Rosa é, talvez, o que mais se identificou com as figuras marginais, embora sua família fosse de classe média. Nessa vertente, Noel criou o Joaquim, falso doutor, que se dizia advogado, mas que era motorneiro, e foi flagrado pela namorada a dirigir o bonde, a todos pedindo por favor, para a vergonha da mocinha.


Esse imortal sambista, originário do bairro carioca de Vila Isabel, cantou também a figura do folgado que, no botequim, pedia para pendurar as despesas e ainda pedia “algum, que o dele ficara com o bicheiro”. O compositor carioca inseriu na música as figuras do seu Jacinto, a quem se advertia para apertar o cinto, pondo as calças no lugar. Uma das mais comoventes personagens do repertório do samba é o pedreiro Valdemar, ilustre desconhecido, que ainda de madrugada, tomava o trem da Circular e ia fazer muitas casas sem, no entanto, ter uma casa pra morar. Construía edifícios, mas neles não podia entrar. Esse registro de protesto, de inconformismo com a injustiça social, fruto da parceria de Roberto Martins e Wilson Batista, gravado em 1949, marcou também fortemente as composições de Chico Buarque, a partir dos anos 60, e incomodou tenazmente a ditadura. Esse compositor, cantor e escritor escreveu a letra da canção Pedro Pedreiro, o que passou a vida à espera do trem, que o levaria de volta pro norte; à espera da sorte, à espera do filho e, enfim, à espera da morte, porque desesperançado. Mas em se tratando da questão social, São Paulo não poderia ficar de fora. Adoniram Barbosa voltou o olhar para os marginalizados, os sem-teto, o lumpen-proletariado. Assim, Mato Grosso, Joca, Arnesto e outros iguais viviam em malocas, nas gramas do jardim, nas favelas paulistanas e até na detenção, vendo “o sol nascer quadrado”. Um dos mais belos sambas, da contemporaneidade, foi composto por Paulinho da Viola, e consiste em uma súplica ao seu amigo Antonico, em favor do sambista Nestor, tocador de cuíca, surdo e tamborim, que passava por dificuldades, na corda bamba, carente de uma viração.


Mas o compositor brasileiro, na sua veia humorística, trouxe também para o repertório da canção nomes e figuras inusitadas, como João Teimoso, cria de Noel Rosa, que teimava em dar de comida a quem tinha sede, e bebida a quem tinha fome; e a lírica figura de Nicanor, que dava nó de marinheiro quando amarrava um amor, o mesmo Nicanor que ninguém sabia por onde andava, mas era conhecido porque tinha mão de jardineiro, quando cuidava do amor. Essa antológica figura nasceu da criatividade de Chico Buarque. E um dos momentos mais trágicos dos personagens da música popular foi idealizado por Gilberto Gil, em seu Domingo no Parque, em que relata o desespero do feirante José, ao flagrar, numa manhã de domingo, no Parque de diversões, o seu amigo João, ao lado de sua Juliana, divertindo-se na roda gigante. Ele segurava uma flor e ela um sorvete. Ferido pelo espinho da rosa, cego de ciúmes, José investe contra João, golpeando-o com uma faca. E é um corpo que cai! Nem a feira nem a construção civil funcionaram no dia seguinte, ante a ausência dos protagonistas, um morto e o outro preso. Uma outra composição interessante, porque hilária, bem sertão nordestino, sítio de um povo que ri de suas próprias desditas, composta e gravada pelo irreverente ritmista Jackson do Pandeiro, é intitulada “O Canto do Sapo” , em que cria um diálogo entre batráquios, na lagoa: Tião?! – Ui! - Fosse?! – Fui! Comprasse? comprei! Pagasse? paguei! – Me diz quanto foi! Foi quinhentos réis! Em outro forró, Jackson contou a incrível estória da mulher do Aníbal, que deu uma surra no Zé do Angá, quebrando-lhe a cara porque este quis conquistá-la. Ela explicava pro Delegado, “foi pra mulher de homem ele sabê respeitá”!


Um dos personagens mais ternos e sofridos da MPB é João Bobo, criado por Ivon Cury, gravado em 1955, descrevendo a história de João, apelidado Bobo, que era um coitado, um tolinho, que falava sozinho, meio que andarilho, sempre a caminhar. Mas parava quando via passar a seu lado, vestindo de chita, Rosinha do Prado. Ela, que a todos o seu amor vendia, nada queria com o pobre do João. Servindo de mofa de todos, que dele se riam, João queria com ela casar. Esse amor obsessivo supera o tempo e ela já velha e enferma, só João vai lhe levar uma última flor. Essa canção teve um estrondoso sucesso, competindo com “ Ah, que saudade da Amélia”, de Ataulfo Alves, um hino de exaltação à mulher submissa. Esse tema, do papel da mulher , é retomado em “Oh! Seu Oscar”, samba de Ataulfo, obra prima de enxovalhamento da mulher. É o próprio seu Oscar que narra sua história: Ao chegar em casa, cansado do trabalho, o corpo martirizado, a vizinha lhe conta que sua mulher fora embora, há meia hora, deixando-lhe um bilhete. Vai se saber então o motivo de a mulher abandonar sujeito tão trabalhador, como seu Oscar. E o que dizia o bilhete? - “Não posso mais, eu quero é viver na orgia!” Pasme-se! O samba é muito bom, mas o tema, fora hoje, levaria o Movimento feminista a fazer uma bela fogueira dos discos do suave e elegante Ataulfo. Mas os tempos eram outros: o homem podia tripudiar da mulher, sem medo de represália. O compositor apenas reproduzia em seu samba os conceitos e comportamento sociais. A deusa se travestia às vezes em bruxa. E o homem, coitadinho, se tornava vítima da malícia e da natureza dissimulada da mulher.