Segundo o juiz João Ricardo dos Santos Costa, número insuficiente de servidores e de magistrados, a falta de investimento em tecnologia e ampla possibilidade de recursos contribuem para os entraves da Justiça
João Ricardo dos Santos Costa
Reina no Judiciário uma realidade desconcertante: nossos juízes estão entre os mais produtivos do mundo. No entanto, continuam sendo excessivamente cobrados por mais celeridade no andamento dos processos. A morosidade na tramitação das ações judiciais é o principal motivo de queixa da população e a grande responsável pela imagem negativa que o Poder Judiciário sustenta. O estoque processual não para de crescer. Atualmente, tramitam nos tribunais brasileiros 93 milhões de ações. Cerca de 90% nas primeiras instâncias.
Como pode um país com magistrados cada vez mais produtivos não conseguir dar vazão aos processos? Mais: recente levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aponta uma média de 5,6 mil processos por juiz. Há quem acumule até 310 mil processos. Quais as razões para tamanha discrepância? Estariam os brasileiros confiando mais e acessando com mais facilidade a Justiça? Também. Mas há motivos menos animadores. A ampla possibilidade de recursos judiciais, o número insuficiente de servidores e de magistrados e a falta de investimento em tecnologia estão entre os maiores entraves.
Mas nada tem sido tão danoso ao cidadão e, ao mesmo tempo, tão pernicioso ao próprio Judiciário quanto a litigância de grandes instituições públicas e privadas, notadamente as que estão submetidas à regulação, como bancos e operadoras de telefonia. Fazendo uso predatório da Justiça e ignorando direitos básicos do cidadão, valem-se do excesso de recursos judiciais. De acordo com levantamento do CNJ sobre os 20 maiores litigantes do país, mais da metade é composta por instituições bancárias. Do restante, grande parte é composta por entidades do Estado.
Num círculo vicioso, isso tem provocando uma sobrecarga de processos, abarrotando os escaninhos, principalmente na Justiça de 1º grau, com o acúmulo de milhares de ações, muitas delas repetidas. O comportamento dessas corporações tem consumido os já escassos recursos humanos e financeiros do Poder Judiciário, os quais poderiam ser mais bem aplicados, acelerando o julgamento de outras ações tão ou mais importantes, fortalecendo, assim, a cidadania. Enquanto isso, a magistratura brasileira segue adoecendo, por conta da alta carga de trabalho, em razão das cobranças para atender às metas, que, em regra, são humanamente impossíveis de serem cumpridas.
Não é de se estranhar, portanto, que as varas mais congestionadas do país sejam as fiscais, cuja responsabilidade é cobrar dívidas. Apenas em São Paulo, a Vara de Execuções Fiscais soma 1,55 milhão de processos, o que reflete a forma como algumas empresas usam o Judiciário. Elas remuneram advogados para produzirem recursos, ancorados na permissividade surreal formalizada na legislação processual brasileira. E nós não temos, atualmente, mecanismos eficazes para coibir esse abuso. Os dispositivos que amparam as sanções por litigância de má-fé não alcançam eficácia, porque o sistema não possibilita que o juiz vislumbre a dimensão dos danos que causam no sistema as práticas protelatórias, consequência do exercício anacrônico do processo individual para resolver litígios coletivos. Assim, as condenações contra os abusos não abalam o lucro do negócio.
Temos insistido que o CNJ poderia auditar os processos dos grandes demandantes para informar aos juízes sobre o macrolitígio. O sistema possibilita que o juiz perceba o litígio individual, o processo isolado, atomizado. Não há como se punir uma litigância de má-fé sem conhecer o todo, sem uma informação global e o tamanho dos danos impostos ao sistema. Por isso, no último 10 de março, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) encaminhou um manifesto ao conselho sugerindo a criação de um grupo de estudos científicos a respeito desse mau uso da Justiça, que poderá produzir informações de amparo e sustentação às sentenças em casos de grandes litigantes. Aí, sim, teremos uma política para o Judiciário brasileiro, por meio de mecanismo que desvele o litígio e subverta o ultrapassado conceito de intervenção, de forma a inaugurar uma diferente maneira de atuação, capaz de solucionar integralmente o macrolitígio e coibir as futuras violações, hoje tão inseridas nas práticas comerciais de grandes corporações. Eis uma meta ao CNJ.
É um tema inadiável e fundamental. Deve envolver o Poder Judiciário e a sociedade. Trata-se de movimento de valorização da magistratura, que se sente impotente diante do acúmulo de tantos litígios de "clientes" frequentes da Justiça. E ação para fazer do Judiciário brasileiro real instrumento de proteção aos direitos e à cidadania.
João Ricardo dos Santos Costa é juiz titular da 16ª Vara Cível de Porto Alegre e presidente da AMB
Fonte: Correio Braziliense