Em entrevista concedida à ASMEGO, o juiz André Reis Lacerda (foto), titular da Vara Criminal de Mineiros, conselheiro da Associação e coordenador dos cursos de extensão da ESMEG, comenta pontos relevantes do I Congresso Internacional da AMB, realizado no Canadá, e a importância da troca de experiências no cenário jurídico internacional.
Confira.
ASMEGO - Os Congressos, em Goiás, fazem parte das atividades da coordenadoria dos cursos de extensão na ESMEG, pasta em que o sr trabalha e foi representando. Qual a importância desta participação?
André Lacerda - Primeiramente, importante salientar quanto à necessidade deste relato, verdadeira prestação de contas e forma de compartilhar os conhecimentos lá apreendidos, já que, uma das missões da Escola é a de preocupar-se com a educação continuada dos juízes e com os cursos de extensão como pudemos observar neste Congresso. Considero que é cada vez mais importante que os colegas goianos estejam participando das discussões nacionais e internacionais, não como forma de apenas marcar posições, mas para servirem de agentes multiplicadores destas discussões de interesse geral em nosso Estado, para que, sem pretensões de “reinvertarmos a roda”, possamos adaptar à nossa cultura local tudo aquilo o que de eficiente tem sido adotado em outras localidades.
Em outra medida, temos que nos preparar para implementar políticas educacionais de longo prazo como as parcerias com as Universidades Corporativas, atualizações por meio de cursos à distância, os simpósios com vistas a discutir problemas práticos e atuais na aplicação da Justiça.
Só para se ter uma idéia, pude perceber que conceitos hoje utilizados por nós nos nossos movimentos pela conciliação e Centros de Pacificação Social, guardadas as diferenças sistêmicas e culturais, já são lá utilizados há algumas décadas. Sinal de que caminhamos bem para uma política judicial pública que já deu exemplos de resultados em vários países do mundo e que, se tivermos capacidade de iniciativa e de adaptabilidade, poderemos continuar nos legitimando enquanto Poder perante nossa sociedade e obtendo a credibilidade desejada a partir do trabalho sério e comprometido que estejamos desempenhando.
De forma geral, como o Senhor avalia este Congresso no Canadá? Qual o objetivo a ser alcançado?
André Lacerda - Pois bem, posso dizer que, de forma geral, o Congresso Internacional no Canadá superou as expectativas dos colegas que lá estiveram. Digo isto, não em termos de profundidade, até porque as explanações foram bastante simples, objetivas e didáticas com objetivo de mostrar como funciona aquela Justiça, mas sim em termos de abrangência de atividades e de experiências compartilhadas. É claro que muitos Congressos internacionais e com a participação de magistrados brasileiros de forma pontual e para discutir temas específicos. No entanto, foi a primeira vez que uma delegação brasileira de magistrados, de forma oficial e em quantidade tão significativa, cerca de 200 colegas, foi convidada para conhecer a realidade jurídica e judicial de outro país, com vistas a trocar experiências e utilizar as diferenças para aprimorarem a entrega da prestação judicial.
Por óbvio que, em relação ao nosso sistema, existem muitas diferenças na cultura jurídica e na realidade cultural do Canadá que, hoje, nos impedem de aplicar vários dos conceitos lá implantados com sucesso. Entretanto, acredito que o maior objetivo foi justamente a possibilidade de imersão na cultura judicial canadense, de forma a nos provocar inúmeros questionamentos quanto ao que precisamos avançar e quanto aos caminhos corretos que já estamos tomando.
Como se deu a logística do Congresso, o que foi apresentado aos magistrados brasileiros e como foram divididas as atividades?
André Lacerda - Estivemos em 3 (três) das principais cidades canadenses. Toronto, Montreal e Ottawa (capital). Foram 42 (quarenta e duas) palestras, incluindo visitas e workshops que se estendiam das 9 da manhã até as 18 hs durante 2 (duas) semanas de intensos trabalhos, envolvendo temas como: O Sistema Legal Canadense, Common Law e Civil Law; Carta de Direitos Canadense (a sua Constituição revisada); Julgamento em uma Sociedade Multiétinica; The Bar e Upper Canada Law Society ( a OAB Canadense ); Educação continuada dos Juízes Canadenses; Revisão da conduta dos juízes; Alternativas ao julgamento: mediação e conciliação pelos juízes; As associações de magistrados no Canadá: organização, função e independência, dentre outros. Além do mais, várias palestras foram ministradas nas Universidades de Montreal, Mc Guill e Universidade de Ottawa. Visitamos também a Corte de Justiça e a Corte de Apelações de Ontário; o Tribunal de Direitos Humanos; A Corte de Apelação de Quebec; Tribunal de Juventude e a Suprema Corte do Canadá.
As palestras eram sempre proferidas por juízes canadenses, Chefs Justices (desembargadores e Ministros), embaixadores, além de advogados e professores de renome naquele país.
De forma suscinta, em que contexto o magistrado canadense julga e como se estrutura a Justiça Canadense?
André Lacerda - Não é por menos que o Canadá é tido como um dos países mais desenvolvidos e com um dos melhores índices de qualidade de vida do mundo. Sua extensão territorial de dimensão continental (mais de 9 millhões de km, diga-se de passagem, maior que do Brasil), congrega, de forma harmônica e eficiente, cerca de 30 milhões de habitantes em uma sociedade multiétnica que, a par da dupla colonização francesa e inglesa e cultura bilíngue, incentivou as imigrações de povos de todo o mundo para possibilitar o adensamento populacional.
As tradições francesas, representadas pela absorção do Civil Law e incorporadas desde o “Code Napoleon” , são mescladas ao pragmatismos dos demais países do Reino Unido que professam o Common Law e decidem com base no estudo de casos (os “cases”) e precedentes judiciais. Sua Constituição escrita data de 1867 e sua Carta de Direitos e Liberdades de 1982. No âmbito político e macro, o Canadá é uma monarquia constitucional que tem o parlamento como fundamento para a ampla maioria de suas decisões. A Rainha da Inglaterra detém uma representatividade apenas formal e simbólica, apenas para justificar que o país ainda esteja vinculado ao Reino Unido.
Sob outro prisma, o território canadense é dividido em províncias e as jurisdições são divididas em âmbito provincial e do Governo Federal. Congregam 3 níveis de Tribunais: Tribunais de Julgamento, Tribunais de Apelação em cada província e Suprema Corte – situada na capital Ottawa. Em adendo, possuem tribunais especiais como o: Tribunal Administrativo, Tribunal Tributário (“Tax Court”) e um Tribunal de Arbitragem privada. Os canadenses dão muito valor ao respeito às diferenças étnicas e direito à compreensão das línguas como fator decisivo para exercício dos seus respectivos direitos. Isto influencia diretamente os julgamentos, já que os magistrados se preparam para absorver uma cultura poliétnica em suas decisões que, a título exemplificativo, além de contar com um amplo aparato de conselhos comunitários para consulta, também contam com peritos nas mais diversas áreas e de tradutores de mais de 100 (cem) idiomas à disposição nos tribunais.
Como é a investidura no cargo de juiz no Canadá? O que representa o cargo por lá ? Como o Sr avalia a sua independência em comparação com o Brasil?
André Lacerda - Para responder a esta pergunta, além dos requisitos objetivos, preciso contextualizar um pouco a compreensão do que é a Justiça para os Canadenses que, diga-se de antemão, é muito respeitada. Objetivamente, após uma preparação rigorosa nas Universidades Canadenses, o magistrado precisa congregar a BAR e Upper Canada Law Society, espécie de OAB deles e advogar no mínimo por 10 (dez) anos e, com base em uma lista fornecida por esta mesma instituição e após triagem por uma Comissão independente ser nomeado pelo Governo. Podem se aposentar proporcionalmente aos 65 (sessenta e cinco) anos, ou aos 75 (setenta e cinco), ao estilo de nossa compulsória.
Não há o nosso sistema de concursos públicos para a carreira. Na prática, apenas são nomeados em média quem já atuou nas Cortes por mais de 20 (vinte) anos. O cargo de “juge”/ “judge” (juízes) ou “chiefs justices” (desembargadores ou ministros) dotam de ampla credibilidade no Canadá. Primeiramente, porque as pessoas detém concepções bastante sólidas quanto a importância do Judiciário para a legitimação da Carta de Direitos e Liberdades (1982) e da própria “monarquia constitucional” que, na realidade, entendo como sendo um dos países que mais seriamente efetivam o princípio democrático até mesmo pela necessidade de convívio nesta sociedade multiétnica. Em segundo, porque o respeito às leis formais e os mecanismos de efetivação de seu cumprimento estão de tal forma arraigadas no inconsciente coletivo das pessoas no Canadá que, lá, segundo os palestrantes o simples fato de os magistrados serem nomeados pelo governo não desnatura a sua independência, a uma porque a nomeação governamental segue a risca a indicação das listas repassadas pela entidade representativa dos advogados; a duas, porque somente por desvio de conduta ou funcional, com devido processo legal se pode retirar o magistrado dos quadros das Cortes porque o sistema não tergiversa com a credibilidade conquistada ao longo de séculos.
Se comparado ao Brasil, entendo que nosso sistema convive bem melhor com a idéia do concurso público, temperado pelo sistema do “quinto” Constitucional que, acredito deveria evoluir para a indicação direta pela OAB e MP, com a escolha da lista apenas pelos Tribunais, sem passar pelo Executivo ou Legislativo. Não vejo problema algum em a magistratura estabelecer relações institucionais sérias com os demais os Poderes e lhes reivindicar políticas públicas.
O magistrado não precisa ser um “ser intocável” para ser independente, até porque é, sobretudo, sua conduta ética que lhe garante isto, muito mais do que a estabilidade do que a simples concurso. Não adianta só passar no concurso e não ter compromisso com a Constituição, com as leis em geral e com o povo. Esta é uma mensagem passada pelos canadenses e que poderíamos todos nos espelhar: “a independência para os juízes tem que ser uma questão principiológica”!
Agora, para fazer um paralelo dentro da nossa realidade, a par de os juízes passarem relativamente novos, só podem adentrar aos quadros após pesquisa de sua vida pregressa, rigorosas avaliações e demonstrações razoáveis de uma maturidade institucional mínima, seja pelo cumprimento da quarentena (3 anos de advocacia) seja pelos testes junto às bancas. Guardadas as exceções, entendo que nosso sistema “forja” a têmpera de nossos juízes ao longo de até cerca de 45 (quarenta e cinco) anos de judicatura. Como se sabe, o ato de julgar não é atividade simples e não demanda somente conhecimento técnico e o simples passar do tempo. O magistrado se debate com sua consciência a cada processo, até porque cada processo representa várias vidas humanas e os magistrados são sensíveis a isto.
Como é tratada a questão da Educação Judicial no Canadá?
André Lacerda - Os magistrados no Canadá, mesmo que adentrando após 20 (vinte) anos de advocacia, fazem cursos iniciais rápidos (uma espécie de cursos de vitaliciamento) para apreenderem as nuances do “ato ou arte de julgar.” Os canadenses têm bastante consciência de que saber as leis é uma coisa, aplicá-las com temperança depende também de treino e experimentação.
O Juiz Brian W. Lenox – então Diretor Executivo do NII – Nacional Judicial Institute (uma similar da nossa Escola Nacional da Magistratura) nos disse a educação judicial no Canadá envolve tanto questões dos temas de mérito, quanto questões de administração para os Tribunais e foros que são, em certa medida, cobrados de todos que administram as Instituições judiciais. Os cursos são periódicos e acontecem em todas as províncias e nas sedes federais. Todos os magistrados, em qualquer patamar ou instância, participam de cursos de reciclagem e discutem, em workshops, as melhores soluções para se efetivar a Justiça de forma eficiente.
Os programas dos cursos envolvem desde as perspectivas socioculturais, estudos de casos, estudo de leis, sistemas e Tribunais, além de uma programação estruturada em que cada magistrado pode se programar durante o ano, a quantidade de cursos e os temas de seu interesse para se adequarem às exigências mínimas de carga horária e periodicidade. Esta Escola Nacional, trata-se, na verdade, de uma ONG independente administrada por magistrados. Os cursos são ministrados também por magistrados e sua estrutura reproduz um modelo de gestão compartilhada das Escolas em que se tem: um diretor executivo, assessores jurídicos, um diretor acadêmico, um diretor de educação, 5 (cinco) conselheiros sênior, diretor internacional e funcionários/ consultores.
Guardadas as proporções e, em um número reduzido, acredito que é um modelo interessante a ser implantado nas Escolas Judiciais do Brasil com, pelo menos, Diretor Judicial, que representa a Escola, sub diretores: Acadêmico- pedagógico, Executivo-administrativo; magistrados de coordenadores de área e de planejamento, além de Consultores – Desembargadores e Professores. Um ponto que me chamou a atenção, entretanto, foi a seriedade com que tratam o aprendizado experêncial, o longo processo de planejamento e reavaliação dos cursos; a definição de objetivos nítidos para se responder à pergunta: o que se quer que o juiz tenha apreendido ou condições de fazer ao final do curso?
As demandas práticas de como controlar uma audiência, quais os requisitos necessários para se fazer uma sentença melhor, como realizar a administração das unidades jurisdicionais, dentre outros são devidamente testados de modo a que os magistrados sempre compatibilizem 3 dimensões no aprendizado: substantiva (a lei e como aplicá-la); quais habilidades necessárias para desempenhar a função judicante e análise do contexto social de como julgar em uma sociedade multifacetada.
Quais os outros temas que foram desenvolvidos durante as palestras no Congresso e o que te chamou a atenção?
André Lacerda - Além de tudo o já aqui consignado, explicaram com riqueza de detalhes como fazem para interpretar a Carta de Liberdades, com a exemplificação de vários casos concretos que servem de paradigma para uma interpretação constitucional evolutiva (leading cases). Na Universidade de Ottawa, o Prof André Judouin explicou como funciona o sistema eleitoral no Canadá, com a peculiariedade de que lá os presos podem votar, para não marginalizá-los ainda mais do sistema e permitir que investimentos sejam feitos no sistema prisional; como funciona o processo civil Canadense, dentre outros, além de dois temas muito interessantes proferidos por professores brasileiros e que se fixaram nas Universidades Canadenses há vários anos e que me chamaram a atenção até mesmo por eu ser titular de uma vara criminal: O conceito de pena como um obstáculo cognitivo à inovação do sistema do direito criminal e Opnião Pública e Justiça Penal.
Agora, para não cansar os leitores, me permitirei tratar destes temas com mais vagar em artigos próprios e que farei questão de disponibilizá-los ao site da ASMEGO, para que a experiência lá adquirida possa ser devidamente compartilhada com os colegas.