Jornal O Popular, edição de 26/7:
Reportagem de Alfredo Mergulhão
Considerada por autoridades da Justiça e da segurança pública como a principal demonstração de falha no processo de execução penal no Brasil, a reincidência criminal chega a 70% em presos que gozam do benefício de cumprir pena nos regimes aberto, semiaberto ou na liberdade condicional. Os dados, repassados pelo Ministério Público Estadual, são do Sistema de Informações Penitenciárias (InfoPen), referentes a 2009.
Os exemplos de reincidência podem ser encontrados diariamente, mas ganharam destaque com os recentes casos que envolveram o pedreiro Adimar Jesus da Silva, que ficou conhecido como maníaco de Luziânia, do pintor Luciomar Ferreira Vaz Monteiro, que estuprou duas irmãs e matou uma delas em Trindade, e do padeiro Adaylton Nascimento Neiva, apontado como autor de oito assassinatos contra mulheres em Novo Gama e cidades do entorno do Distrito Federal.
As causas da reincidência são variadas, apontam especialistas. Abrangem as políticas de reinserção social do preso, a superlotação das cadeias, as brechas da legislação penal brasileira e a falta de acompanhamento dos detentos após a concessão da progressão de regime. Para pleitear a soltura, mesmo que parcial, os condenados por crimes hediondos (como homicídio e estupro, entre outros) que são reincidentes precisam de cumprir três quintos da pena, proporção equivalente a 60% dela.
O Ministério Público (MP)Estadual trabalha em cima dos números do InfoPen para elaborar um perfil dos presos reincidentes em Goiás. De acordo com o promotor de Justiça José Carlos Miranda Nery, coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal (CAO Criminal), o estudo levantará, em parceria com a Universidade Federal de Goiás (UFG), as motivações e o contexto da reincidência, com finalidade de fomentar políticas públicas de ressocialização.
Enquanto as políticas públicas não chegam, a realidade mostra um quadro em que 12 foragidos são recapturados por dia em Goiânia, de acordo com a Polícia Militar (PM). "Não são pessoas que pularam o muro da cadeia. São beneficiados dos regimes aberto, semiaberto, na condicional ou que saíram em indulto e não retornaram para a prisão", diz o comandante do policiamento da capital, coronel Júlio César Mota Fernandes.
Progressão
De maio até 21 de julho deste ano, a Vara de Execuções Penais de Goiânia concedeu benefício de progressão de regime para 238 reeducandos. Todos chegaram aos juizes portando uma certidão de conduta carcerária, emitida pela Superintendência do Sistema de Execução Penal (Susepe).
O documento atesta o bom comportamento durante o cárcere, o que basta para fundamentar a decisão do magistrado, de acordo com o Código Penal (CP) brasileiro. Dentre os beneficiados desde maio, pode ser que existam sentenciados com traços de psicopatia, assim como os assassinos de Luziânia, Trindade e Novo Gama, que tinham laudos periciais que atestavam a possibilidade de reincidência no crime e foram soltos. A legislação brasileira passou, a partir de 2007, com a reforma do CP, a não exigir a realização de exame criminológico como critério para a decisão judicial que determina a progressão de regime.
A Vara de Execuções Penais de Goiânia é uma das únicas do país que solicita os exames, feitos por equipes multiprofissionais. Ainda assim, detentos como Luciomar Monteiro acabaram soltos. O pintor tinha laudo pericial que afirmava que ele poderia voltar ao convívio social, desde que tivesse rigoroso acompanhamento psicossocial. No entanto, o sistema de execução penal não possui estrutura para fornecer o atendimento.
"A soltura de presos que cometeram crimes graves não pode depender apenas do tempo de prisão e do atestado de bom comportamento", afirmou o juiz Wilson Dias, titular da Vara de Execuções Penais de Goiânia. O magistrado sustenta que, da forma como estabelece o texto da lei, mais psicopatas serão soltos.
"Não podemos ser demagogos. O Luciomar, o Fernandinho Beira Mar e o maníaco do parque um dia vão voltar para as ruas. A legislação garante isso", diz o juiz. A certidão de conduta carcerária é um documento elaborado pela Susepe. "Agimos em total conformidade com a legislação", disse o superintendente do órgão, Carlos Roberto Teixeira.
Presidente do TJ-GO admite que há falhas
A soltura de presos perigosos revela falhas no sistema de execução penal brasileiro, como no caso de Luciomar Ferreira Vaz Monteiro. O pintor foi beneficiado com a progressão de regime quando cumpria pena em Goiás sem que o juiz local soubesse que o estuprador tinha condenação na Justiça do Distrito Federal. A falha foi reconhecida pelo desembargador Paulo Teles em recente entrevista ao Face a Face, do POPULAR. Na ocasião, o magistrado afirmou que a sociedade se revolta com razão, pois houve falha da Justiça em não ter buscado outras condenações do acusado, e do Estado, que não fez o acompanhamento ao preso conforme determinação do juiz da Vara de Execuções Penais, Wilson Dias.
A ausência de um banco de dados unificado e acessível a todo Poder Judiciário do País é alvo de críticas do promotor José Carlos Miranda Nery, coordenador do Centro de Apoio Operacional (CAO) Criminal do Ministério Público Estadual (MP). "Os dados são fragmentados, não há um mapeamento nacional. Não tem cadastro feito por tipos de crimes nem por perfil de criminosos. Por isso acontece de um juiz soltar sem saber que o sujeito responde processo ou foi condenado em outro lugar", argumenta.
O promotor aponta outros dois problemas em relação à execução penal brasileira. De acordo com ele, o cumprimento das penas deve ser individualizado, mas os condenados pela Justiça ficam misturados dentro das penitenciárias, sem separação de acordo com o grau de periculosidade. Outra falha refere-se à falta de políticas de reinserção social. O promotor diz que em outros países os presos que progridem de regime são acompanhados por assistentes sociais, que fazem relatórios semanais sobre o detento.
Exame
A não exigência pela legislação do Brasil de realização de exame criminológico para soltura do preso abre uma brecha para saída de psicopatas da prisão. Os únicos critérios exigidos são o tempo de cumprimento da pena e o atestado de bom comportamento. O problema é que pessoas com transtorno de psicopatia estão entre as que apresentam melhor comportamento dentro da prisão. "Elas sofrem de mitomania, que é a característica inerente de mentir. Mudam o discurso diante de cada circunstância. A maioria dos psicopatas tem isso", explica o psiquiatra forense do Tribunal de Justiça de Goiás (TJ), Diego Franco de Lima.
O perito psicólogo Leonardo Ferreira Faria, da Delegacia de Proteção a Criança e ao Adolescente (DPCA) e do Instituto Médico Legal (IML), acrescenta que os psicopatas são agradáveis e manipuladores. "Eles podem se fazer de loucos e tentar ludibriar a Justiça", sustenta. Daí a necessidade de exames criminológicos antes que o preso seja beneficiado com a progressão.
Geralmente, o único exame criminológico que o preso se submete ocorre durante a entrada dele na penitenciária. Aos que tiveram a psicopatia identificada, há acompanhamento médico feito pelo único psiquiatra que atende o sistema prisional goiano. A população carcerária no Estado de Goiás em junho era de 10.112 presos, com déficit de 4.020 vagas. Quando surge necessidade de mais profissionais, os detentos são encaminhados ao Sistema Único de Saúde (SUS). A carência no acompanhamento psicossocial pode ser observado quando um juiz solicita laudo antes de conceder a progressão de regime. O psiquiatra forense do TJ diz que já teve de assinar laudos como inconclusivos devido à impossibilidade de dar um parecer sobre paciente que não pôde assistir durante a pena.
Especialista defende mudanças
A legislação não prevê tratamento diferenciado pelo Código Penal ao psicopata. A psicopatia não é doença, mas o preso com este diagnóstico fica submetido aos mesmos procedimentos dos comuns. O psiquiatra forense Diego Franco de Lima defende o diálogo entre as áreas da Medicina e do Direito para que o psicopata tenha tratamento constante. A medida também garantiria que a sociedade não fique sujeita a novos crimes cometidos por presos com essas características, que acabam soltos quando atingem os parâmetros estabelecidos pela lei.
Já Wilson Dias, juiz da Vara de Execuções Penais de Goiânia, defende modificações na legislação porque na "forma como a lei está posta, os psicopatas vão sair da cadeia mais cedo ou mais tarde". "Nossos deputados e senadores não sabem editar leis. Dessa forma, eu e todos os juizes continuaremos dando progressão de regime".
Por sua vez, o promotor José Carlos Miranda Nery entende que a alegação de que a lei no Brasil é frouxa serve apenas para "esconder os verdadeiros problemas". Para ele, a estrutura precisa funcionar, com acompanhamento aos presos dentro e fora da penitenciária. "Mas é claro que tem pontos que precisam ser revistos, como ter critérios mais rígidos para obter progressão de regime".