Opinião de Heyder Tavares da Silva Ferreira, presidente da Associação dos Magistrados do Estado do Pará, publicada no portal Consultor Jurídico.
Nos últimos anos, a magistratura brasileira vem sendo a vidraça predileta dos algozes que se intitulam os defensores da moralidade no país. Lobos em pele de cordeiro, como dizem os mais antigos, que ligam uma metralhadora giratória para, visando angariar benefícios íntimos (pessoais) ou partidários, simulam defender o abstrato interesse social, sempre falando em terceira pessoa, mas, no fundo, postulam constantemente em primeira.
Na presidência da Associação dos Magistrados do Estado do Pará há pouco mais de um mês, temos visto as mais variadas pérolas da hipocrisia que cercam a discussão sobre a estrutura judiciária brasileira, em especial a do Pará. Uns querem agilidade no julgamento de determinadas demandas. Outros comemoram quando, utilizando os mais arcaicos mecanismos legais, conseguem protelar a prestação jurisdicional. Mas, para dar um verniz de seriedade, debitam os equívocos aos magistrados.
Por mais absurdo que possa parecer, recentemente deparei-me com alguém soberbo em insinuações, querendo determinar o momento judicial da decisão. “Não pode ser assim, a decisão tem que ser assado, caso contrário, o juiz é vendido, negocia nos corredores”, dizia em linhas gerais o “pseudo escritor imparcial”.
Creio, contudo, que a pecha da lentidão e burocracia, bem assim a barafunda do modelo judiciário brasileiro não pode ser colocada na conta exclusiva dos magistrados de carreira. Decerto, temos um longo caminho democrático no Poder Judiciário que precisa ser aperfeiçoado. Precisamos, certamente, conseguir despachar as demandas da população mais carente com a facilidade que a legislação nos dá para determinar a busca e apreensão de um veículo em favor de uma instituição financeira.
Porém, acredito que a discussão que hoje está em voga contra os juízes e juízas brasileiros esteja sendo maquiada para dar um critério de interesse geral, quando, em verdade, trata-se da velha tentativa de achincalhar para depois cooptar.
Lembro-me de forma recorrente, em tais situações, dos versos de Manuel Bandeira no poema “Vou-me embora pra Pasárgada”. Todos querem ser amigos do rei, ter a mulher que desejam na cama que possam escolher. Como a vida seria fácil se todos fossem amigos do sacerdote.
Como seria fácil se a magistratura estivesse sempre a serviço dos interesses dos grandes grupos, dos grandes escritórios, sempre pronta a concordar com o exato momento de prolatar a decisão — inaudita ou após a oitiva da parte adversa — e mais, que essa decisão caísse como uma luva para a vontade patrocinadora da banca.
Felizmente, as coisas não são assim e os beicinhos dos que não se beneficiam com a postura independente da magistratura hão de ser suportados por nós mesmos. Quem escolhe navegar pelo tortuoso, mas compensador mar da judicância, deve saber, de início e sobre todas as coisas, que a caneta não cede a pressões, mandadas em forma midiática de artigos de jornal ou blog.
Somos nós os magistrados, suportando toda a sorte de provocações, que salvaguardamos a todo momento o interesse social. Não inventamos isso. A Constituição Federal nos reservou a apreciação de toda e qualquer ameaça ou lesão a direito.
E nessa postura, não nos cabe o falso jogo de agradar a torcida, com palavras apoteóticas ou tentando fazer uma catarse com a usurpação de papéis. Somos responsáveis pela garantia do devido processo legal e nele, especialmente, o direito de defesa.
Assim como não podemos julgar sem ouvir, é inconcebível admitir que possamos assistir ao julgamento da classe de maneira sumária, sem prévia oitiva, sem dados indiciários, somente para que meia dúzia daqueles que almejam fama — e não a melhoria de qualquer serviço público — possa forjar o papel de tutor da sociedade.
Juízes não criam leis, não estipulam limites para o exercício do direito de forma abstrata. Não dispõem de orçamento e conteúdo programático para realizar a construção de estradas, presídios, hospitais ou pontes. Tampouco, juízes dispõem do poder de petição. Devemos ser provocados como forma de manter equidistância e imparcialidade. Não devemos — e não podemos — sair opinando açodadamente sobre os fatos relevantes da nação, afinal, cabe-nos o julgamento de tais questões.
Nem toda loucura é genial e nem toda lucidez é velha, já dizia o poeta Chico Buarque de Holanda, quando teve sua obra comparada às pirotecnias do movimento musical pop que surgiu no final dos anos 60.
Discrição e imparcialidade são as pedras de toque do magistrado independente e o juiz não existe para engrossar o coro dos contentes: “eu tô só vendo, sabendo, sentido, escutando e não posso falar, tô me guardando pra quando o carnaval chegar”.