O Portal Jota, de abrangência nacional, repercutiu, na edição desta segunda-feira (2), artigo assinado pelo juiz do TJSP Fernando da Fonseca Gajardoni, que palestrou em Goiânia, em dezembro passado, no XIII Congresso Goiano da Magistratura. Relembre. O texto, intitulado Citação e intimação por meio eletrônico no Novo CPC, detalha argumentos defendidos por Gajardoni durante o referido evento da ASMEGO, onde ministrou ao lado dos juízes Aldo Guilherme Saad Sabino de Freitas e Guilherme Sarri Carreira.
Leia a íntegra do artigo.
Citação e intimação por meio eletrônico no Novo CPC
A prática de atos de comunicação por meio eletrônico é a regra do CPC/2015. Tanto o art. 246, V, quanto o art. 270 e parágrafo, estabelecem que as citações e intimações se farão por meio eletrônico, na forma dos arts. 5º e 6º da Lei 11.419/2006.
Para o sucesso da prática, todavia, é indispensável que pessoas jurídicas de direito público e privadas, MP, Defensoria Pública e Advocacia Pública, se cadastrem nos Tribunais perante os quais atuam, sem o que será materialmente impossível a concretização da providência.
Providência, aliás, que em se tornando regra geral no processo civil brasileiro, tende a acelerar acentuadamente o trâmite da citações/intimações, especialmente nas hipóteses em que o ato de comunicação necessite ser praticado fora dos limites territoriais do juízo do processo.
Exatamente por conta disso é que o o § 1º do art. 246 é expresso no sentido de que “com exceção das microempresas e das empresas de pequeno porte, as empresas públicas e privadas são obrigadas a manter cadastro nos sistemas de processo em autos eletrônicos, para efeito de recebimento de citações e intimações, as quais serão efetuadas preferencialmente por esse meio”, aplicando-se tal regra, inclusive, à União, Estados, DF, Municípios, entidades da administração indireta (§ 2º), MP, Defensoria Pública e Advocacia Pública (art. 270, parágrafo único).
E os arts. 1.050 e 1.051 do CPC/2015, em importantes diretivas de direito transitório, fixam o prazo de 30 (trinta) dias para que as pessoas jurídicas da administração direta (União, Estados, DF e Municípios) e indireta (autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista), além do MP, Defensoria Pública e Advocacia Pública, cadastrem-se perante a administração do Tribunal no qual atuem, contados: a) para as entidades/órgãos já constituídos, da entrada em vigor do CPC/2015[1]; e b) para as entidades/órgãos a se constituir, da data da inscrição do ato constitutivo perante o juízo onde tenha sede ou filial.
O art. 196 do CPC/2015, a seu turno – em regra de duvidosíssima constitucionalidade[2] – delega ao CNJ (e aos Tribunais supletivamente) regulamentar a prática e a comunicação oficial dos atos processuais por meio eletrônico, bem como velar pela compatibilidade dos sistemas. Motivo pelo qual foi editada a Resolução CNJ n. 234, de 13.06.2016.
Através da citada Resolução, foi criada a Plataforma de Comunicações Processuais do Poder Judiciário (art. 8º), nas quais se cadastrarão as pessoas indicadas nos §§ 1º e 2º do art. 246 do CPC/2015, e para onde serão encaminhadas todas as comunicações do Poder Judiciário (citações, intimações, etc.), as quais, não acessadas em 10 (dez) dias corridos, consideram-se realizadas (art. 11 e §§).
Ocorre que o art. 15 da Resolução CNJ 234/2016, em verdadeira alteração por norma administrativa do que ficou legislativamente definido no art. 1.050 do CPC/2015, estabeleceu marotamente[3] o prazo de 90 (noventa) dias a partir da disponibilização da Plataforma de Comunicações Processuais para a atualização do cadastro previsto nos artigos 1.050 e 1.051 do CPC/2015. E absolutamente nada disse – tanto quanto o CPC/2015 -, sobre eventuais consequências do descumprimento do dever de cadastramento pelas pessoas indicadas no art. 246, §§ 1º e 2º do CPC/2015.
Diante da omissão da lei e do regulamento administrativo, resta dúvida em se saber se existe alguma sanção que possa ser aplicada à pessoa jurídica renitente, ao MP, Defensoria ou Advocacia Pública. Não se encontra na doutrina grande preocupação com a temática, embora o trato da questão seja relevantíssimo para a eficácia do sistema de comunicação eletrônica estabelecido como regra pelo CPC/2015.
Pensamos que o dever de cadastramento é sim um dever processual, tanto quanto o dever de informar o endereço na petição inicial (art. 319, II, do CPC/2015), ou de informar a mudança de endereço (inclusive eletrônico) no curso do processo (art. 77, V e 274, parágrafo único, CPC/2015).
Dever, aliás, com enorme impacto no procedimento, já que a ausência do cadastramento referido nos arts. 1.050 e 1.051 impede o funcionamento adequado e efetivo do modelo de citações/intimações eletrônicas doravante previsto como regra do Sistema.
Por isso, acredita-se que o descumprimento precitado dever ao fim do prazo fixado no art. 15 da Resolução CNJ 234/2016, eventualmente implica a incidência de sanções processuais pela prática de ato atentatório à dignidade da justiça e litigância de má-fé (arts. 77, §2º e 81, ambos do CPC/2015). A administração direta (União, Estados, DF, Municípios e quem por eles fala, isto é, a advocacia pública), bem como as empresas públicas/privadas (salvo MEs e EPPs), ao não se cadastrar, passam a criar embaraço à efetivação da decisão judicial que ordena a citação/intimação (art. 77, IV), além de opor resistência injustificada ao andamento do processo por conta da dificuldade no estabelecimento da comunicação processual. Algo que viola, respectivamente, os artigos 77, IV e art. 80, IV, do CPC/2015.[4]
Obviamente, a falta de cadastramento não poderá dispensar o ato real de citação e intimação, como prevê o art. 274, parágrafo único, do CPC/2015, norma específica para um situação distinta (mudança de endereço). A comunicação será feita pelas vias menos expeditas de natureza pessoal (carta ou mandado) ou ficta (hora certa ou edital). Mas em cada processo em curso onde for impossibilitada a aplicação dos arts. 246, §§ 1º e 2º e 270 e parágrafo único, do CPC/2015 – isto é, que não for possível o estabelecimento do ato de comunicação pela via eletrônica –, serão aplicadas, após adequado contraditório, as multas previstas nos artigos 77, §§ 2º e 3º e 81, ambas do CPC/2015, inclusive de forma cumulada[5],
Não parece possível, por outro turno, a imposição de astreinte para obrigar ao cadastramento, na forma dos art. 537 do CPC/2015. Ainda que se considere o § 5º, do art. 536 do CPC/2015 – que autoriza a fixação da multa para deveres de fazer e não fazer de natureza não obrigacional –, o cadastramento não é objeto principal da ação onde é constatado o não cumprimento do dever previsto nos artigos 246, §§ 1º e 2o e 1.050/1.051 do CPC/2015, ou mesmo do art. 15 da Resolução CNJ 234/2016.
Até poderia se cogitar de uma ação ajuizada pela advocacia pública ou MP para obrigar uma grande concessionária de serviço público federal, recordista em número de processos em trâmite, a efetuar o cadastramento a bem da economia (custo e tempo) do serviço estatal de justiça. Nestes casos até seria razoável ser cogitada a fixação da astreinte, inclusive de ofício, na forma do art. 537 do CPC/2015 (vide art. 536, caput, do CPC/2015), vez que o escopo seria o de compelir ao cumprimento do objeto da demanda (o cadastramento).
Contudo, na mesma ação onde se constata a impossibilidade de ser realizado o ato de comunicação por meio eletrônico, a determinação do cadastramento extravasaria por completo o objeto da demanda, além do que, de ordinário, a parte adversa não seria legitimado para fazê-lo. Mais razoável, portanto, inadmitir a fixação da multa do art. 537 do CPC/2015 nestes casos.[6]
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Neste primeiro dia útil do ano de 2017 – que coincide com mais um verão vivido pelo articulista –, desejo a todos os leitores desta coluna semanal um novo ano de paz, saúde e harmonia. E aos estudiosos e operadores do processo, desejo que deixemos de lado a erudição vazia e a leitura enviesada da legislação (ora ditada pelo corporativismo, ora pela pura e inexplicável desconfiança no sistema de Justiça), a fim de, juntos, construirmos um processo civil que tenha o jurisdicionado (não os advogados, doutrinadores, promotores ou juízes) como o centro de todas as atenções.
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[1] O STJ tem pronunciamento administrativo (não jurisdicional, portanto), no sentido de o CPC/2015 ter entrado em vigor no dia 18.03.2016 (enunciado administrativo n. 1). Para ampla análise da enorme divergência que graça em doutrina a respeito do tema, cf. o texto conjunto dos autores desta coluna: ROQUE, Andre; DELLORE, Luiz; GAJARDONI, Fernando; MACHADO, Marcelo; OLIVEIRA JR., Zulmar. Vigência do Novo CPC: um IRDR para chamar de seu. Jota. Publicado em: 14.03.2016. Disponível em: http://jota.info/artigos/vigencia-do-novo-cpc-um-irdr-para-chamar-de-seu-14032016
[2] Zulmar Duarte de Oliveira Jr. e Andre Vasconcelos Roque, ao tratar dos artigos 196 e 246 do CPC/2015, apontam a potencial inconstitucionalidade da disposição, que delega competência ao CNJ para a disciplina das comunicações por meio eletrônico em dissonância com a CF/1988. De acordo com eles, “não se tem como casar esta competência do CNJ, para dispor sobre processo eletrônico, ainda que de forma suplementar, com suas atividades nitidamente ligadas ao campo administrativo, financeiro ou disciplinar. Nem se diga que o Código poderia ampliar as áreas de atuação do CNJ, uma vez que o próprio artigo 103-B da Carta Magna limita tal poder, somente admitindo tal extensão na via do Estatuto da Magistratura” (Teoria Geral do Processo: comentários ao CPC/2015. São Paulo: Método, 2016, p. 648/649 e 748)
[3] Marotamente porque, na verdade, não há atualização alguma de cadastro a fazer, mas o próprio cadastro considerando que, até então, a disciplina da questão era inexistente em âmbito nacional.
[4] De modo semelhante, cf. Daniel Amorim Assumpção Neves. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Juspodvm, 2016, p. 1792.
[5] A possibilidade de cumulação das multas dos artigos 77, §§ 2º e 3º e 81, desde que relativas a atos de improbidade distintos, foi por mim defendida no Teoria Geral do Processo: comentários ao CPC/2015 (Gajardoni, Dellore, Roque e Oliveira Jr. São Paulo: Método: 2015, p. 261) e nos Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil (Coord. Teresa Arruda Alvim Wambier et al. São Paulo: RT, 2015, p. 291/292)
[6] Em sentido contrário: Daniel Amorim Assumpção Neves. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Juspodvm, 2016, p. 1792.
Fernando da Fonseca Gajardoni - Doutor e Mestre em Direito Processual pela USP (FD-USP). Professor Doutor de Direito Processual Civil da USP (FDRP-USP). Juiz de Direito no Estado de São Paulo