Para Gilmar Mendes, punição não garante saúde coletiva nem segurança. Decisão final ainda depende do voto de outros 10 ministros do Supremo
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), relator do Recurso Extraordinário (RE) 635659, com repercussão geral reconhecida, votou pela inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), que define como crime a porte de drogas para uso pessoal. Segundo o entendimento adotado pelo ministro, a criminalização estigmatiza o usuário e compromete medidas de prevenção e redução de danos. Destacou também que se trata de uma punição desproporcional do usuário, ineficaz no combate às drogas, além de infligir o direito constitucional à personalidade. O julgamento foi interrompido em seguida, quando ministro Edson Fachin pediu vista do processo para analisar melhor o caso. Não há previsão de quando o tema voltará a ser analisado.
Em seu voto, o relator declarou a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas sem redução de texto, de forma a preservar a aplicação na esfera administrativa e cível das sanções previstas para o usuário, como advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento em curso educativo. Segundo seu entendimento, os efeitos não penais das disposições do artigo 28 devem continuar em vigor como medida de transição, enquanto não se estabelecem novas regras para a prevenção e combate ao uso de drogas.
O ministro ainda estabeleceu que, nos casos de flagrante por tráfico de drogas, a fim de dar validade à prisão preventiva, será necessária a apresentação imediata do autor à presença do juiz. Essa medida seria necessária a fim de evitar que usuários sejam presos preventivamente por tráfico sem provas suficientes, atribuindo ao juiz a função de analisar as circunstâncias do ato e avaliar a configuração da hipótese de uso ou de tráfico.
Em seu voto, o ministro deu provimento ao recurso apresentado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo e absolveu o réu por atipicidade da conduta. No caso, que deverá servir de parâmetro para os demais processos sobre a matéria, trata-se de um detento flagrado com a posse de três gramas de maconha.
Descriminalização e legalização
O relator destacou em seu voto que a descriminalização do uso não significa a legalização ou liberalização da droga, que continua a ser repreendida por medidas legislativas sem natureza penal, assentando que podem haver outras medidas adequadas para lidar com o problema. Cita ainda diversos países que adotaram legislações que optaram por não criminalizar o uso, havendo ainda casos em que a decisão foi tomada pela Suprema Corte, como na Colômbia, em 1994, e na Argentina, em 2009.
Quanto à opção tomada pelo legislador brasileiro na Lei 11.343/2006, que retirou do ordenamento a previsão da pena de privação de liberdade, a manutenção do uso como tipo penal acaba tendo ainda assim efeitos nocivos para o usuário e para a política de drogas.
“Apesar do abrandamento das consequências penais da posse de drogas para consumo pessoal, a mera previsão da conduta como infração de natureza penal tem resultado em crescente estigmatização, neutralizando, com isso, os objetivos expressamente definidos no sistema nacional de políticas sobre drogas, em relação a usuários e dependentes, em sintonia com políticas de redução de danos e prevenção de riscos.”
Dano coletivo e privado
Para declarar a inconstitucionalidade da previsão do artigo 28 da lei, o ministro vê que a norma possui vícios de desproporcionalidade, uma vez que dados indicam que em países em que o consumo foi descriminalizado, não houve aumento significativo do uso. Isso porque, entre os fatores que levam o indivíduo ao consumo de drogas, a criminalização seria um fator de pouca relevância.
O uso de drogas, em seu entendimento, é conduta que coloca em risco a pessoa do usuário, não cabendo associar a ele o dano coletivo possivelmente causado à saúde e segurança públicas. “Ainda que o usuário adquira as drogas mediante o contato com o traficante, não se pode imputar a ele os malefícios coletivos decorrentes da atividade ilícita. Esses efeitos estão muito afastados da conduta em si do usuário. A ligação é excessivamente remota para atribuir a ela efeitos criminais”, afirma.
Direito de personalidade
Por fim, o ministro entende que a criminalização acaba interferindo no direito de construção da personalidade dos usuários, principalmente os jovens, mais sujeitos à rotulação imposta pelo tipo penal, classificados como criminosos por uma conduta que, se tanto, implica apenas autolesão.
“Tenho que a criminalização da posse de drogas para uso pessoal é inconstitucional, por atingir, em grau máximo e desnecessariamente, o direito ao desenvolvimento da personalidade em suas várias manifestações, de forma, portanto, claramente desproporcional”, afirma.
Ações do CNJ
O voto propôs também que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) seja acionado para diligenciar, em articulação com Tribunais de Justiça, Ministério da Justiça, Ministério da Saúde e Conselho Nacional do Ministério Público os encaminhamentos necessários à aplicação dos dispositivos do artigo 28 em procedimento cível. Também cabe ao CNJ, segundo o relator, articular estratégias preventivas e de recuperação de usuários com os serviços de prevenção. O CNJ também deve, em seis meses, regulamentar, a apresentação imediata do preso em flagrante por tráfico ao juiz, e apresentar relatórios semestrais com providências tomadas e resultados obtidos.
Fonte: STF e G1