Associação dos Magistrados do Estado de Goiás

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Reportagem do jornal O Popular escancara situação de presídios


O jornal O Popular, em reportagem publicada neste domingo (12) escancarou a situação de caos nos presídios goianos. O jornal ouviu a juíza Telma Aparecida Alves Marques, da 1ª Vara de Execuções Penais de Goiânia, que fala sobre o sistema de hierarquia existente dentro das unidades prisionais e os problemas provocados pelo imenso déficit de vagas existente.


Confira a íntegra da reportagem.


O poder nas mãos dos presos


Hierarquia na cadeia é exercida pela violência. No ano passado 17 detentos foram assassinados em Goiás


Cobrança de até R$ 2 mil por uma noite de sono nas celas e sentenças de morte, extorsão ou espancamento dentro das alas. São os próprios presos que ditam as regras de convivência dentro da Casa de Prisão Provisória (CPP) e da Penitenciária Odenir Guimarães (POG), o maior presídio de Goiás, localizado no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, na região metropolitana da capital. A hierarquia entre eles é improvisada e se sustenta pela violência, em meio ao descaso dos gestores. No ano passado 50 detentos morreram no Estado, 17 deles foram assassinados, conforme dados da Secretaria de Administração Penitenciária e Justiça (Sapejus).


A crise no sistema prisional do Maranhão expôs a perda de controle administrativo e a falta de investimentos na área no País. Em Goiás, não é diferente. “O poder interno da penitenciária está nas mãos dos presos”, alerta o promotor de Justiça Haroldo Caetano, do Ministério Público estadual. “Ainda não perdemos todo o controle, mas estamos prestes a isso”, diz a juíza Telma Aparecida Alves Marques, da 1ª Vara de Execuções Penais de Goiânia, destacando o déficit de 6 mil vagas em Goiás.


Para sobreviverem no sistema prisional goiano, os 17 mil detentos devem obedecer ao esquema de funcionamento nos presídios, geralmente com cinco perfis de presos na hierarquia interna (veja quadro nesta página). O POPULAR não teve autorização para entrar na POG e na CPP, mas apurou como é o dia a dia da população carcerária em Goiás, o quarto Estado que teve mais detentos assassinados em 2013, em todo o País, considerando números absolutos.


O preso a quem os demais devem obediência é chamado de comando. Nada pode ser feito para provocá-lo, já que ele tem o poder sobre os demais, pode ser o mandante de alguns assassinatos e, geralmente, tem a melhor cela. “Ele não é um criminoso fraco. Normalmente, é ousado, cometeu um crime grande aqui fora. Ele também não seria rei se tivesse cometido um crime pequeno”, diz um agente penitenciário.


Todo preso que comanda a ala tem um monitor, que, na prática, exerce papel semelhante ao de um gerente. Apesar de improvisada, a hierarquia tem uma lógica. Um novo preso só cumpre pena ali se tiver autorização dos demais. Eles avaliam o perfil do novato e cabe ao monitor dar o recado para a administração penitenciária. Enquanto não é encaminhado a uma cela, o condenado fica de 7 a 15 dias num lugar chamado corró. “A prática criminosa continua nos grandes complexos. Lá quem tem dinheiro e poder é rei”, pondera a juíza Telma.



Delegado contesta registros


A Secretaria de Administração Penitenciária e Justiça (Sapejus) informa que, do total de 17 presos assassinados no Estado em 2013, somente 6 casos foram registrados dentro do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. O delegado Cléber Leandro Toledo Rodrigues, titular do Grupo de Investigação de Homicídios da cidade, rebate os números oficiais e informa que, em 2013, houve 13 homicídios dentro do complexo e outros 2 no estacionamento do regime semiaberto.


A diferença de números mostra que alguns homicídios podem ser subnotificados. O delegado ressalta que, no ano passado, houve oito homicídios na Penitenciária Odenir Guimarães (POG) e cinco na Casa de Prisão Provisória (CPP). A Sapejus, por sua vez, informou apenas seis assassinatos na POG e nenhum na CPP e no semiaberto.


A Sapejus alegou que só contabiliza casos dentro do complexo prisional e que o restante pode ter ocorrido nas imediações. O delegado, entretanto, garante que as investigações mostram que os assassinatos ocorreram na área do complexo.


Detentos pagam até R$ 2 mil para dormir


A cúpula dos presos de uma ala também é formada pelos chefes de celas. Eles são o terceiro na hierarquia e ajudam a dar o ultimato para receber, ou não, um novo detento. Se o novato for recusado pelo comando de um bloco, os agentes tentam colocá-lo em outro. “A gente pergunta para ele onde tem convívio, ou seja, boa relação com outros presos”, conta o superintendente de Segurança Penitenciária, João Carvalho Coutinho Júnior, da Secretaria de Administração Penitenciária (Sapejus).


João Carvalho explica como questiona um criminoso que, depois de receber condenação, é transferido da CPP para a POG. “Se está subindo da CPP, em qual bloco você puxou lá? Quem do bloco de lá tem bom convívio e onde ele está aqui? Na ala A, na ala C?”, afirma, sem explicar como este tipo de informação vaza antecipadamente ao preso.


O chefe de cela está abaixo do comando e do monitor. Lá dentro, onde dormir num ambiente superlotado é tido como privilégio de poucos, ele é quem estipula o preço de um sono. “Quando entrei no regime fechado, não conhecia o chefe. Tive de pagar R$ 2 mil para ele para conseguir dormir, ou, então, iria ficar em pé, no banheiro”, conta um preso do regime semiaberto que passou pela POG. “Entrei em desespero, minha família se virou para arrumar o dinheiro. E não pode demorar, porque senão você pode morrer”, diz.


A juíza da Vara de Execuções Penais de Goiânia reforça esta versão. “Os presos me contam que, até para ser aceito numa ala de convívio mais agradável, o próprio comando cobra deles R$ 1 mil, R$ 2 mil. A administração não fica sabendo, ninguém fica sabendo”, conta, para emendar: “O preso paga até para cumprir pena.”


Outro detento do semiaberto conta que teve dificuldade de se adaptar, já que não tem família que o visita e, quando estava na POG, tinha de lavar banheiro e limpar a cela para os outros presos como forma de não ficar endividado e mal visto pelos demais. “A gente se endivida muito por causa das drogas”, pontua.


Presidiários têm de assumir autoria de crimes


Num sistema marcado pela hierarquia, os presos encontram brechas até para tentarem burlar investigações de crimes cometidos lá dentro. Em casos de assassinatos ou em que são encontradas armas e porções de drogas, eles mesmos nomeiam um preso para assumir a autoria e lhe dão apelido de caneta. “Quem quer matar realmente mata, mas pega o preso mais bobinho para ser o caneta”, conta um agente de segurança penitenciária. Ele acrescenta que conheceu um caneta que foi assassinado depois que desistiu da função. “Todos sabiam que ele não era o criminoso e, por isso, quando começou a negar a autoria, passou a ser perseguido até ser morto dentro da própria ala”, acentua.


Os demais presos que não estão na estrutura hierárquica são os mais pobres e, geralmente, ficam nas celas mais precárias que as outras. “A dificuldades é que eles não têm dinheiro para comprar apoio”, relata um agente .


Déficit de agente agrava situação


As deficiências no sistema prisional goiano, castigado pela superlotação e infraestrutura precária dos presídios, tem outro agravante: o déficit de agentes de segurança prisional. Dos 1.561 mil profissionais no Estado, 40% são concursados e 60% contratados. O POPULAR visitou o Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia na última sexta-feira e percebeu como isto impacta no local. Não havia nenhum agente nas guaritas de segurança. Só urubus no telhado delas.


A reportagem apurou, ainda, que, em média, dentro de toda a Penitenciária Odenir Guimarães (POG), ficam somente de 8 a 14 agentes por turno, para vigiar 1,6 mil presos. A Secretaria de Administração Penitenciária e Justiça (Sapejus) não confirma esta informação, alegando que comprometeria a segurança na área.


O governo do Estado deve anunciar ainda este mês concurso com 600 vagas para agentes de segurança prisional, contando o cadastro de reserva. O número é inferior ao total de profissionais com contrato de dois anos no Estado.


O superintendente de Segurança Penitenciária, João Carvalho Coutinho Júnior, ligado à Secretaria de Administração Penitenciária e Justiça (Sapejus), reforça que o principal problema é o excesso de presos aglomerados. No caso da POG, segundo ele, outro problema é a infraestrutura antiga, já que o presídio foi construído no início da década de 1950.


Vice-coordenadora da Pastoral Carcerária Nacional, Petra Sílvia Pfaller rebate. “Para o administrador, é fácil jogar a culpa só na infraestrutura, que não tem jeito mesmo. Mas, em outros presídios no Estado, onde com pouco investimento seria possível agir para resguardar a dignidade dos presos, os recursos quase que não existem”, critica ela. “O Estado perdeu o controle da situação por causa do desinteresse de décadas”, emenda a representante religiosa.


Encarceramento


A avaliação do promotor de Justiça Haroldo Caetano, do Ministério Público de Goiás (MP-GO), é semelhante à de Petra. “O problema não é só estrutural. A política brasileira tem usado a prisão como meio de encarceramento em massa, apenas para conter problemas da ótica social, perante à sociedade”, diz ele.


Sobre a parceria público-privada (PPP) que o Estado pretende firmar para construir o novo presídio no complexo de Aparecida de Goiânia, Haroldo também faz críticas. “A PPP é uma privatização travestida”, considera. “Fundamentalmente, quando o governo transfere para uma empresa privada esta responsabilidade, retira do Estado o poder de punição”, observa o promotor de Justiça.


A Sapejus informou que, este ano, vai abrir 748 vagas em presídios no Estado e, até 2016, conforme divulgado, serão 4.073, no total. Procurado pela reportagem, o titular da Sapejus, Edemundo Dias, preferiu não se pronunciar.


Estado é o quinto em homicídios


Os 17 homicídios registrados, em presídios goianos, no ano passado, colocam o Estado atrás apenas do Maranhão (60), Ceará (32), São Paulo (22) e Amazonas (20), em números absolutos. Goiás teve mais homicídios que Pernambuco (10), Minas Gerais (9), Paraná (7) e Rio de Janeiro (7), onde organizações criminosas contam com maior estrutura e são mais ramificadas.


Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil em Goiás (OAB-GO), Mônica Araújo de Moura lembra que o Estado viola a Lei de Execuções Penais e até a Lei de Diretrizes da então Agência Goiana do Sistema Prisional, hoje Secretaria de Administração Penitenciária e Justiça (Sapejus). “A lei assegura, ao privado de liberdade, tratamento digno e humanitário, o que não existe”, avalia a advogada. “Só a construção de novos presídios não vai resolver o problema. Faltam políticas públicas para o sistema prisional e, em Goiás, não há planejamento”, emenda.



Entrevista / Camila Nunes Dias


“Sistema feito para segregar”


Uma das maiores estudiosas do sistema prisional no Brasil, a doutora em Sociologia e professora da Universidade Federal do ABC (UFABC) Camila Nunes Dias, ressalta que, em Goiás, disputas individuais provocam mortes.



O sistema prisional no Brasil passa por uma crise sem precedentes, acarretada, sobretudo, pela falta de investimentos...


Nós estamos assistindo à repetição de uma crise que já ocorreu diversas vezes, em diversos Estados. Temos um sistema carcerário, em todo o País, sem exceção, com condições desumanas, degradantes, precárias. A superlotação é um dos principais fatores que fazem com que as prisões fiquem deterioradas, em condições degradantes. As condições da prisão, como alimentação, material de higiene básica, roupa, assistência jurídica, é praticamente inexistente.


Em Goiás, o maior presídio foi construído nos anos 1950. Por que os governos não se interessam em investir neste setor, que, em tese, deveria reeducar os presos?


Os fatores principais que levam a estas condições é que a prisão no Brasil é para pobre. Não há interesse em tornar as cadeias mais dignas, a sociedade em geral pouco importa com o preso. Politicamente, os governos não têm muito interesse em melhorar as prisões porque não dá voto. Temos um sistema carcerário feito para segregar uma população pobre, negra, jovem e sem quaisquer outros direitos. As prisões são um símbolo da nossa estrutura social, profundamente desigual. O Estado, quando se preocupa em prender, mas não em garantir o mínimo de condição de vida do preso, abre mão do controle e abre o caminho para a formação de facções criminosas.”


O quinto Estado do País que mais registrou assassinatos dentro dos presídios é Goiás, embora não tenha grandes facções criminosas. A que se deve isso?


Quanto mais organizada está a criminalidade em um Estado, menos violência vai ocorrer dentro das prisões. São Paulo é o berço onde o Primeiro Comando da Capital (PCC) tem a maior liderança, é hegemônico. Em São Paulo, muitas vezes há mortes em presídios, que são registradas como mortes naturais ou suicídio. Onde o crime está bastante organizado, tem uma redução nos homicídios. Num universo carcerário bastante desorganizado, sem a presença de grupos que controlem a população carcerária, há maior possibilidade de haver conflitos entre os presos porque, muitas vezes, neste caso, um se revolta contra o outro.


Então, podemos dividir a relação dos criminosos com o Estado de três formas...


A violência é maior num cenário onde há disputa entre facções, como é o caso do Maranhão. Lá a falta de controle chegou a ser exacerbada e provocou mortes e uma série de crimes que incluem o estupro de mulheres e irmãs de presos além da agressão aos doentes mentais. Em segundo lugar, quando não há grupos fortemente organizados e só existem pequenos comandos, como em Goiás, há uma série de disputas individuais que acabam terminando em morte. E num cenário como São Paulo, com organização grande da criminalidade, o grupo de comando controla os presos. Então, geralmente, há menos conflitos e violência, devido a esta organização.