Considerada a escravidão do século 21, o tráfico de pessoas se transformou em debate popular, conquista do Judiciário e também tema da novela Salve Jorge, da Rede Globo. Magistrado há 11 anos, o juiz da comarca de Jaraguá, Rinaldo Aparecido Barros, associado da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (ASMEGO), cuidou de um dos maiores casos de pedofilia do Brasil, envolvendo chefe do Executivo, diversos secretários, um vereador e vários empresários. Na sequência, começou a ter notícias de tráfico de mulheres para fins sexuais, em diversas cidades da Região Norte, como, por exemplo, Uruaçu, que foi objeto de matéria da Revista Veja em 2005. Foi aí que decidiu atuar de forma mais intensa no assunto, criando inclusive o site www.traficodepessoas.org. Abaixo, ele fala um pouco dessa caminhada, e dos desafios, tanto os superados quanto os que ainda estão por vir.
Recentemente, a ASMEGO sediou um simpósio sobre tráfico de pessoas, tema que está sendo retratado na novela Salve Jorge. Acredita que a divulgação da novela traz uma conscientização sobre o tema para a sociedade de uma forma geral?
O Tráfico de Seres Humanos é considerado a escravidão do Século 21, porque vitimiza milhões de pessoas em todo o mundo, caracterizando-se pelo agenciamento, aliciamento, recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de
pessoa, por meio de ameaça, violência física ou psicológica, sequestro, cárcere privado, fraude, engano, abuso de poder, financiamento, corrupção, ou qualquer outro meio análogo, para fins de exploração sexual, trabalho em condições análogas a de escravo, a servidão por dívida, o casamento servil, a adoção ilegal, a remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo, ou qualquer forma que acarrete ofensa relevante à dignidade da pessoa ou a sua integridade física.
Milhares de homens, mulheres e crianças ao redor do planeta, em busca de melhores oportunidades de vida, diariamente, são enredados por circunstâncias desumanas e perigosas como resultado do tráfico de seres humanos. Por isso, o consentimento dado pela vítima é irrelevante para a configuração desse crime hediondo. Apesar de sua intensa gravidade, o tráfico de pessoas ainda é um problema invisível para a maioria da Sociedade Mundial. No Brasil, igualmente, as pessoas, de maneira geral, não reconhecem a existência deste delito.
Nesse sentido, a Novela Salve Jorge cumpre um papel social de extrema relevância, ao despertar a consciência e sensibilizar a população brasileira, assídua assistente de tais programas televisivos, a respeito da urgência do tratamento dessa questão, levando em conta que o tráfico de pessoas degrada a dignidade humana e deve ser tratado como crime lesa-humanidade. Assim, toda a Sociedade deve estar atenta e agir imediatamente para diminuição do número alarmante de vítimas. A prevenção é a principal arma!
O Poder Público, entretanto, não pode e não deve esperar que temas tão graves e urgentes sejam pautados por uma novela. E, no caso do tráfico de pessoas, não é isso que está acontecendo, porque, desde 2004, com a incorporação do Protocolo de Palermo ao Sistema Jurídico Brasileiro e, posteriormente, com a edição do I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, este assunto passou a fazer parte da agenda política brasileira. Importante, por isso, que os componentes da rede de enfrentamento dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, Ministério Público, Polícias, Organismos Internacionais e outros países, potencializem as ações que já executam e que direta ou indiretamente são afetas à questão. Há ainda muito o que fazer, mas acredito que estamos no caminho certo.
As novelas de uma forma meio generalizada são muito superficiais ou não?
Acredito que a Novela Salve Jorge está dando um tratamento adequado à questão do tráfico de seres humanos. O crime está sendo mostrado e discutido em suas várias formas de exploração (sexual, adoção ilegal, remoção ilegal de órgãos e etc). Por óbvio, trata-se de ficção, cuja trama conta com vários outros componentes. Especificamente, quanto ao tráfico de pessoas, penso que a autora Glória Perez está sendo feliz em sua abordagem do tema, que é tão sensível e provoca tanta indignação na audiência. Espero que as pessoas aumentem sua consciência sobre este flagelo e passem a atuar em conjunto com as autoridades na prevenção e colaborando no enfrentamento por meio de denúncias de suspeitos.
Como começou o interesse do senhor pelo assunto e desde então quais as mudanças tem observado?
Sou magistrado em Goiás há 11 anos. Trabalhei em diversas comarcas do Estado (Valparaíso de Goiás, Cavalcante, Niquelândia e Jaraguá - onde estou atualmente). Em Niquelândia, cuidei de um dos maiores casos de Pedofilia do Brasil, com envolvimento do chefe do Executivo, diversos secretários, um vereador e vários empresários. Quase todos foram condenados. O prefeito, que tem foro privilegiado, sequer foi denunciado. Porém, o seu assessor de imprensa, que lhe emprestou a casa para abusar da menor, foi condenado. Por isso, estive na CPI da Pedofilia e sugeri a modificação da Lei, para torná-la mais severa. Assim, o caso de Niquelândia contribuiu para a mudança do Código Penal, com a criação do Estupro de Vulnerável (artigo 217-A), para que o "usuário sexual de menor de 14 anos" não fique impune, como no caso do prefeito.
À época em que estava em Niquelândia, comecei a ter notícias de tráfico de mulheres para fins sexuais, em diversas cidades da região como, por exemplo, Uruaçu, que foi objeto de matéria da Revista Veja em 2005, com o título "A cidade goiana das 'espanholas'", de 02/03/2005). Muitas mulheres abandonavam sua família, inclusive filhos pequenos, para se aventurarem na Europa. Isso me causou, desde o princípio, muita preocupação. Por isso, passei a estudar o fenômeno tráfico de pessoas.
A partir do momento em que o Conselho Nacional de Justiça criou o Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, na Comissão de Acesso à Justiça e Cidadania, presidida pelo Conselheiro Ney Freitas, passei a ter uma atuação mais constante no enfrentamento ao tráfico de pessoas, sobretudo com ações preventivas e a criação do site www.traficodepessoas.org.
O Tribunal de Justiça de Goiás firmou um Termo de Cooperação Técnica para o Combate ao Tráfico de Pessoas, em maio de 2011. Na sequência, foi realizado I Simpósio Internacional para o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, nos dias 14 e 15/05/12, em Goiânia. Realizamos o II Simpósio, nos dias 25 e 26/10/2012, em São Paulo - SP, com a participação de membros do Poder Judiciário, Ministério Público, Polícias Federal, Civil e Militar, Ministério da Justiça, Infraero, Defensoria Pública,OAB etc. Estamos preparando o III Simpósio, que ocorrerá em Dourados, MS, nos dias 13 e 14/06/2013, que terá a participação de diversos países da América Latina, com especial atenção à população indígena que tem sido vítima constante de traficantes de pessoas.
Como o ex-presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Ayres Britto, recebeu no dia (11/7/12) a Secretária do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos, Janet Napolitano e, durante a audiência, realizada na Presidência da Corte, ambos assinaram um documento de cooperação conjunta no combate ao tráfico de pessoas, representantes do
CNJ fizeram uma visita técnica aos Estados Unidos, da qual participei, entre os dias 08 e 13/09/2012, para troca de experiências entre os dois Países. Isso porque somente a cooperação jurídica internacional será capaz de fazer um enfrentamento adequado a esse crime que envergonha a humanidade.
Os números relativos ao tráfico de seres humanos são assustadores: já é a terceira atividade criminosa mais lucrativa do mundo, vitimando cerca de 2,5 milhões pessoas, a cada ano, segundo dados da ONU! Nossa legislação ainda é inadequada e ineficaz, fomentando a impunidade! Não temos políticas públicas de assistência às vítimas, quanto a tratamento médico/psicológico/psiquiátrico e, também, mecanismos de reinserção ao mercado de trabalho e proteção a elas e a suas famílias! Repita-se, o melhor remédio é a prevenção! Há muito que fazer e temos que sair do discurso vazio...
Apesar de ter julgado apenas um caso de tráfico de pessoas, sinto-me obrigado a fazer esse trabalho, por entender que o magistrado deve ser um agente de transformação social. Se cada juiz brasileiro conseguir alertar a sociedade local onde está inserido, sobretudo levando uma mensagem de prevenção às escolas de Ensino Fundamental, várias de nossas crianças estarão a salvo das redes do tráfico de pessoas.
Devemos agir, tal como um beija-flor tentando apagar o incêndio da floresta, fazendo cada qual sua parte, porque ainda que não mudemos o mundo, ele não vai nos mudar!