Em recente julgado, o Superior Tribunal de Justiça concedeu ordem de Habeas Corpus reconhecendo a ausência de tipicidade do assim denominado estelionato judiciário. É dizer, conduta em tese praticada com a finalidade de induzir a erro as partes, o juiz, ou ambos, mediante a apresentação de documentos ou argumentos inidôneos, no contexto de uma demanda civil, obtendo a final sentença favorável.Trata-se do julgamento do HC 136.038, realizado pela 6ª Turma do STJ, que teve como relator o ministro Nilson Naves. A ementa encontra-se publicada no Diário Eletrônico de 30/11/2009. Muito embora a ordem tenha sido concedida por maioria — restou vencido o ministro Og Fernandes que apresentou judicioso voto divergente — a decisão reafirmou o entendimento da Corte quanto à ausência de previsão típica dessa espécie de conduta (HC 878.469, 5a Turma, Min. Gilson Dipp; RHC 2889-0, 6ª Turma, Min. Pedro Acioli).
O tema é interessante. Em síntese, o acórdão considerou não ser típica para o delito de estelionato a conduta de quem se utiliza de elementos inidôneos em processo sujeito ao exercício do contraditório e à ampla defesa, pois faltaria à conduta o ardil, o meio fraudulento hábil a proporcionar a obtenção de uma vantagem indevida. Em situações como a que se cuidou, essa vantagem adviria de uma sentença, sujeita à revisão a partir de todos os recursos previstos na lei processual.
Nesses termos, de acordo com o voto proferido pelo relator, a conduta poderia ser reconduzida aos artigos 14 a 18 do Código de Processo Civil. Jamais, porém, ser objeto de persecução penal. Nesse particular, o ministro Nilson Naves adotou como razão de decidir o voto vencido do relator do Habeas Corpus impetrado perante o Tribunal Regional Federal da 4a Região, desembargador federal Néfi Cordeiro, para quem “as supostas manobras e inverdades no processo podem configurar deslealdade processual e infração disciplinar, mas não crime de falso ou de estelionato”.
O voto condutor foi acompanhado pelo ministro (desembargador convocado do TJ-SP) Celso Limongi, o qual acrescentou aos argumentos do relator o fato de que “...o legislador penal, quando quis proteger a administração da Justiça, não previu taxativa e expressamente a figura do estelionato judiciário, mas tipificou condutas como o falso testemunho e a falsa perícia, a denunciação caluniosa, a comunicação falsa de crime ou de contravenção, a autoacusação e tantas outras”.
O caso concreto tem como pano de fundo imputação levada a efeito pelo Ministério Público Federal perante a Justiça Federal de Porto Alegre (RS).
Em síntese, segundo os termos da denúncia, a caracterização do estelionato judiciário deu-se a partir do ajuizamento de pedido de indenização por lucros cessantes deduzido contra empresa pública federal, posteriormente extinta e absorvida pela União. Ainda de acordo com a denúncia, a inicial teria sido instruída com certidão narratória relativa a uma demanda anterior, cujo conteúdo não corresponderia à verdade. Assim, a empresa autora da segunda demanda estaria a pleitear verbas que já teriam sido pagas na primeira demanda, ajuizada dez anos antes.
O pedido de indenização foi deferido em primeira instância, vindo a ser confirmado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Com a extinção da empresa requerida e inclusão da União no processo, os autos foram remetidos à Justiça Federal do Rio Grande do Sul, sede da autora, onde teve início o processo de liquidação e execução de sentença.
Assim, o estelionato judiciário estaria caracterizado, em primeiro lugar, pela obtenção de sentença favorável em feito onde se pretendeu a alegada cobrança em duplicidade de indenização, bem como, em segundo lugar, no curso dos procedimentos de liquidação e execução de sentença, em virtude de terem os acusados, “ciente de impropriedades dos cálculos dos peritos judiciais e dos peritos assistentes”, requerido “(...) o julgamento de procedência da liquidação com os parâmetros apontados em sua manifestação, ou a realização de nova perícia, em que se observassem os parâmetros por ele apontados, os quais sabia serem indevidos”.
Essas questões foram detidamente discutidas nos autos dos procedimentos cíveis. Particularmente no que diz respeito à alegada duplicidade de cobrança, ainda no curso do processo de conhecimento, tanto a sentença de primeiro grau como a decisão do TJ-SP que a confirmou enfrentaram o tema e consideraram improcedente a alegação.
Por outro lado, foram numerosas as manifestações de juízes federais de primeira e segunda instância da 4ª Região, sempre no sentido de afastar a hipótese de duplicidade de cobrança, sustentada também pela União, inclusive com a aplicação de multa pela litigância de má-fé.
A tese de duplicidade de cobrança e exigência de valores indevidos, reiteradamente discutida no âmbito de processo cível, à luz do contraditório, com o exaurimento de todos os recursos possíveis, serviu de base empírica para o oferecimento de denúncia por estelionato contra União (art. 171, §3º), na modalidade denominada pela doutrina e pela jurisprudência como estelionato judiciário.
Ou seja, no caso analisado pelo STJ, os advogados que patrocinaram a causa — eis os acusados do delito de estelionato — teriam logrado êxito em não apenas induzir como manter em erro as partes contrárias e seus advogados, bem como os diversos magistrados que exerceram jurisdição, em primeiro e segundo graus, no âmbito da Justiça Estadual de São Paulo e da Justiça Federal da 4ª Região, durante aproximadamente 18 (dezoito anos).
Em última análise, portanto, é possível concluir pelo acerto da decisão proferida pela 6ª Turma do STJ no julgamento do HC 136.038, no sentido de que essa espécie de conduta não pode ser reconduzida à figura do estelionato.
Como foi muito bem ressaltado nos votos vencedores, não se pode descartar a possibilidade de condutas que se amoldem à litigância de má-fé. Para esses casos, porém, o ordenamento jurídico brasileiro previu as hipóteses típicas e suas respectivas sanções, tanto na legislação processual civil como no próprio Código Penal. Não se pode, porém, cogitar de estelionato.