Juízo deve ter o significado de vara judicial e não de comarca em respeito à garantia do direito social ao trabalho, previsto na Constituição Federal (artigos 5º, inciso XIII, e 6º), dos princípios da dignidade humana, da livre iniciativa e do Estado Democrático de Direito, sob pena de retrocesso social. Com esse entendimento, unânime, a 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO), que seguiu voto do desembargador Hélio Maurício Amorim, manteve decisão da juíza Sirlei Martins da Costa, da 3ª Vara de Família de Goiânia, que garantiu a magistrada aposentada Maria Luíza Póvoa Cruz o direito de advogar na comarca de Goiânia em uma ação de interdição movida por um filho contra a mãe.
Na ação, o autor alegou que Maria Luíza não poderia exercer a advocacia na comarca de Goiânia em razão da vedação estabelecida pelo artigo 95 da CF (parágrafo único, V), que determina aos juízes o impedimento do exercício da advocacia no juízo ou tribunal do qual se distanciou antes de três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração. Contudo, Sirlei entendeu que essa proibição se refere somente ao juízo do qual a magistrada se afastou (no caso 2ª Vara de Família de Goiânia), e não prevalece em toda a comarca.
Ao negar provimento ao agravo de instrumento (recurso cível ajuizado em uma instância superior quando um juiz nega algum pedido a uma parte), interposto contra a decisão singular, Hélio Maurício fez um histórico acerca da chamada “quarentena de saída” (termo usado para definir a proibição de membros da magistratura de exercerem a advocacia no juízo ou Tribunal do qual se afastaram, por aposentadoria ou exoneração pelo prazo de três anos) desde o início da Reforma do Judiciário consolidada pela Emenda Constitucional nº 45/2004, após 13 anos de tramitação, que tem como uma de suas normas o artigo 95, da CF, dispondo sobre o referido tema. “Diante da breve análise histórica da questão pode-se constatar que, apesar da sua importância, a denominada quarentena não foi fruto de um estudo acurado sobre seus efeitos e implicações, exigindo, assim, uma abordagem proficiente a fim de se evitar eventuais aplicações desarrazoadas de uma norma restritiva. A utilização dos clássicos métodos de interpretação constitucional, com o fim de conferir ao termo juízo a significação de comarca é estéril, já que diante do embate principiológico o intérprete deve aplicar a ponderação dos princípios. A primeira é de concordância prática e a segunda de dimensão de peso ou importância. Por essa razão o mais proporcional e razoável é dar ao termo juízo a significação de vara e não de comarca em respeito à garantia social ao trabalho que integra o mínimo existencial imprescindível a uma vida humana digna, cujo desrespeito caracteriza-se em verdadeiro retrocesso social”, explicou.
Conduta ilibada
Por outro lado, Hélio Maurício ponderou que não é proporcional nem razoável o entendimento de que após a aposentadoria a magistrada, que exerceu por anos a função judicante, o que, a seu ver, deixa clara a sua ilibada reputação e idoneidade moral, seja considerada ímproba pela suposta exploração do seu prestígio e influência em seus antigos pares na comarca em que atuava. “A migração da magistrada para a advocacia terá reflexos positivos em todos os sentidos, sendo injustificável estender essa proibição para toda a comarca como pretende o agravante, sob pena de ofensa aos princípios essenciais do Estado Democrático de Direito relativo aos valores sociais do trabalho, livre iniciativa e dignidade da pessoa humana”, esclareceu.
Em estudo aprofundado sobre a questão, o relator lembrou ainda que as normas processuais vigentes já estabelecem situações em que os magistrados devem declarar-se suspeitos ou impedidos de atuarem em determinados processos (Código de Processo Civil, artigos 134/138). “Por esse motivo presumir uma parcialidade positiva ou favorável do magistrado condutor do feito pelo simples do advogado de uma das partes ser juiz aposentado há menos de três anos não é plausível”, asseverou, ao pontuar que não é possível dar interpretação ampla às normas restritivas do Direito.
Observando a importância do livre exercício da profissão, o desembargador apontou outro dispositivo da CF (artigo 5º, inciso XIII), cujo teor dispõe sobre o “livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. “O texto constitucional, de norma que institui uma restrição ao livre exercício da profissão, é uma exceção no ordenamento jurídico, que tem como regra geral a liberdade do exercício de profissão”, avaliou.
Posicionamentos favoráveis
Na decisão, proferida em 16 de fevereiro deste ano, Sirlei Martins entendeu que a vedação do exercício da advocacia por magistrado aposentado em toda uma comarca é irrazoável e inconstitucional, uma vez que Goiânia, por exemplo, possui numerosa população e inúmeros juízos, além de configurar uma restrição de direitos, como ao exercício de profissão, sendo inadmissível, portanto, a interpretação extensiva da norma. Entendimento semelhante foi manifestado pelo juiz Ricardo Teixeira Lemos, da 7ª Vara Cível de Goiânia, em 11 de abril, na ação civil pública movida pelo Ministério Público de Goiás (MP-GO) contra G.F. e outros.
Citando vários dispositivos do CNJ, o requerente sustentou que por estar cumprindo a quarentena, já que se aposentou em 13 de agosto de 2010, Maria Luíza estaria impedida de advogar na comarca de Goiânia. No entanto, o magistrado enfatizou que além de ter natureza meramente administrativa, a decisão do CNJ deixa claro que o juiz é impedido de advogar na comarca de única vara ou na vara da comarca que tenha outras varas. “Na comarca de Goiânia que existem várias varas é óbvio que o magistrado pode advogar em todas, exceto naquela que presidiu, e também no Tribunal. O citado do CNJ é cristalino nesse sentido. É preciso lembrar ainda que a palavra final sobre o assunto é do Poder Judiciário, pois a decisão do referido órgão é somente administrativa, ou seja, jamais poderá sobrepor a judicial em razão do sistema de jurisdição púnica adotado no Brasil”, esclareceu.
Ementa
A ementa recebeu a seguinte redação: “Agravo de Instrumento. Ação de Interdição. Representação Processual. Magistrado Aposentado. Quarentena de Saída. Hermenêutica Constitucional. Embate Principiológico. Moralidade. Princípios Materiais Estruturantes e Fundantes. Estado Democrático de Direito. Valor Social do Trabalho. Dignidade. Lógica do Razoável. Norma Restritiva de Direito. Interpretação Extensiva. Vedação. 1 - A interpretação mais proporcional e razoável é dar ao termo “juízo” a significação de “Vara Judicial” e não de “Comarca”, em respeito a garantia do direito social ao trabalho (CF, arts. 5º, inciso XIII, e 6º), que integra o mínimo existencial imprescindível a uma vida humana digna, cujo desrespeito consubstancia-se em um verdadeiro retrocesso social, ofensivo aos princípios fundantes do Estado Democrático de Direito. 2 - A contrário sensu, não é proporcional ou razoável entender que uma magistrada que tenha exercido anos de judicatura - o que lhe confere a presunção de tratar-se de profissional de ilibada reputação e idoneidade moral - após sua aposentadoria seja objetivamente considerada ímproba, pois hábil a explorar seu prestígio e a influenciar sues antigos pares em toda a Comarca em que laborou. 3. Por outro lado, as normas processuais vigentes já regram as situações em que os magistrados devem declarar-se suspeitos ou impedidos para atuarem em determinado processo (CPC, arts 134/138), não sendo plausível, portanto, presumir parcialidade do magistrado julgador, pelo simples fato do causídico de uma das partes ser magistrado aposentado a menos de 3 (três) anos. 4 - A norma que institui restrição ao livre exercício da profissão, constitui exceção no ordenamento jurídico, que tem como regra geral a liberdade do exercício da profissão. E, conforme as regras de hermenêutica jurídica, não se pode dar interpretação ampliativa à norma restritiva. Agravo de instrumento conhecido, mas desprovido”. Agravo de instrumento nº 7101872.30.2011.8.09.000, de Goiânia.