A cada piscar de olhos, um novo processo chega ao Judiciário. No ano passado, de acordo com dados do Justiça em Números, divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os tribunais receberam 28,3 milhões de ações que envolvem conflitos dos mais diversos, que vão desde uma briga de vizinhos, passando por furto de uma barra de chocolate até a cobrança de dívidas milionárias ou de valores irrisórios. São 77.534 processos por dia, 3.230 por hora, 53 por minuto e quase um por segundo.
No ano passado, cada magistrado sentenciou uma média de 1.564 processos ou 1,7% a mais que o mesmo período anterior. Mesmo assim, o estoque total de demandas entre novos e antigos processos ainda é muito alto e vem crescendo a cada ano: são mais de 95 milhões de ações, uma média de 6 mil por juiz. É quase um processo para cada dois brasileiros, conforme destaca o coordenador da Justiça Estadual da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Gervásio Santos (leia entrevista abaixo).
A conta não fecha e, por mais que os juízes trabalhem duro, não conseguem baixar o estoque. Nos estados, eles dizem que a sensação é de que “enxugam gelo”. Para a AMB, isso se deve a um conjunto de fatores, que envolve desde o uso predatório da Justiça, ao excesso de recursos, ações repetitivas nos tribunais, falta de estrutura, de servidores e de magistrados país afora. Uma situação que prejudica o cidadão comum, para quem a Justiça pode ser o único caminho para garantir o cumprimento de seus direitos.
“Os magistrados já chegaram ao limite de sua produtividade. Trabalhamos, em média, cerca de 10 horas por dia. Temos julgado mais de 1.500 processos por ano. É humanamente impossível aumentar essa meta. Hoje, julgamos mais de cinco processos diários. Lidamos com a vida das pessoas e a responsabilidade que envolve cada uma das ações, em cada canto do país, não pode se sobrepor a números”, alerta o presidente da AMB, João Ricardo Costa.
Em valores absolutos, o total de processos cresceu 12 milhões em relação a 2009. O número equivale à soma do acervo total existente em dois dos três maiores tribunais de Justiça Estadual — do Rio de Janeiro e Minas Gerais.
E a massa de processos está concentrada na Justiça de primeiro grau. Do total, 90% tramitam na primeira instância. Apesar de todas as dificuldades enfrentadas nos tribunais, que vão desde à falta de pessoal à de equipamentos de informática, a taxa média de congestionamento tem se mantido na casa dos 70% nos últimos cinco anos.
Dos 95 milhões de processos em tramitação, 42,6 milhões estão na primeira instância e em fase de conhecimento (44,8%) e 43,1 milhões na de execução (45,3%). O restante — 9,9% — tramita nos tribunais superiores.
O aumento do volume de processos segue em um ritmo muito mais acelerado que o de pessoal. Em 2013, ainda de acordo com os dados do Justiça em Números, o número de magistrados cresceu 1,8%, enquanto que o de servidores ficou 2% maior e de ações, 3%.
Para melhorar a questão do congestionamento e morosidade da Justiça, problemas que não têm sido resolvidos com o estabelecimento de metas do CNJ, a AMB defende a criação de um centro de estudos de litigiosidade, visando identificar suas causas e propor políticas públicas para solução.
A proposta foi apresentada recentemente por representes da entidade durante a reunião preparatória para o VII Encontro Nacional do Judiciário, marcado para ocorrer nos dias 10 e 11 de novembro em Santa Catarina. O CNJ já se comprometeu a levar o assunto para ser discutido no evento.
Leia entrevista abaixo com Gervásio Santos, coordenador da Justiça Estadual da AMB
Por que a Justiça virou o caminho para a resolução da maioria dos conflitos da sociedade?
Em primeiro lugar, é preciso dizer que falta à comunidade jurídica brasileira a cultura da conciliação. Basta atentar para o fato de que nas grades curriculares das faculdades de direito não dispomos de disciplina que ensine técnicas de conciliação e mediação. O foco do ensino jurídico ainda é o litígio. Não é só, pois, aliado a esse aspecto cultural, a sociedade de consumo criou uma ambiência fértil às demandas judiciais, muito em razão da ineficiência das agências reguladoras, aí incluído o Banco Central, tanto que os conflitos envolvendo os setores regulados alcançam em torno de 70% das demandas ajuizadas, o que significa dizer que, se houvesse maior eficiência dessas agências, certamente, teríamos um numero menor de ações.
Existe alguma solução para baixar o estoque de processos? Aumentar o número de magistrados seria uma alternativa?
As necessidades são infinitas, porém os recursos são finitos, de sorte que é necessário encontrar meios para racionalização da prestação jurisdicional sem que isso importe em novas despesas. É certo que temos um deficit de juízes no Brasil que precisa ser enfrentado, mas este fato, por si só, não é uma solução definitiva. Apenas a adoção de medidas de fundo, que alterem a lógica do sistema, poderá produzir a baixa do estoque processual, como, por exemplo, a prevalência das ações coletivas sobre as individuais, com a instituição de mecanismos para sobrestamento destas quando aquelas tiverem o mesmo objeto e causa. Por que julgar 50 mil ações individuais, se apenas uma coletiva poderá definir o direito? Outro exemplo é a desjudicialização das execuções fiscais que representam hoje 30% do estoque processual, o que poderia ser obtida com a aprovação do projeto de lei nº 2.412, de 2007, de autoria do ex-deputado Regis de Oliveira, que tramita na Câmara dos Deputados. Os entes públicos ficariam com o encargo de promover administrativamente as execuções fiscais e apenas no caso dos embargos à execução é que o Judiciário poderia intervir. Essas são duas medidas, entre outras, que poderiam reduzir o estoque processual de forma considerável.
Como a AMB imagina a implementação do Centro de Estudos de Litígios por parte do CNJ? E qual o impacto disso na solução desse cenário tão desolador?
Um Centro de Estudos de Litígio tem que trabalhar com a ideia de racionalização do sistema judicial, identificando as causas do número elevado de demandas judiciais e propondo medidas que possam solucionar o conflito sem que, necessariamente, haja a judicialização. Estimular a cultura da conciliação e mediação, promover a interação com as agências reguladoras, priorizar, no plano legislativo, projetos que alterem a lógica da demanda em excesso, seriam providências que a médio e longo prazo produziriam um impacto positivo nesse cenário. Afinal, há algo errado, pois não se concebe a ideia que se tenha quase uma ação para cada dois brasileiros, em outras palavras, é como se todos estivessem envolvidos em alguma ação judicial, considerando que há quase sempre um autor e um réu.
Fonte: AMB