Superlotação, insalubridade, ócio e violência marcam sistema que pretende recuperar jovens infratores
Três apreensões por tráfico, quatro roubos a mão armada e um homicídio constam da ficha do adolescente. Com 15 anos, de pele branca e fala calma, ele já passou por quatro centros de internação de menores infratores entre o Distrito Federal e Goiás e hoje está numa unidade em Formosa, no entorno do DF. Ele lista a diferença entre as unidades com termos comuns no sistema penitenciário: onde havia “boi”, e não vaso, qual servia a melhor “xepa” e como usou uma “teresa” para matar um colega de “barraco”.
O vocabulário do adolescente (referindo-se ao buraco no chão que serve como sanitário, à comida ofertada nas unidades, à corda feita de lençóis amarrados e ao alojamento que dividia com um desafeto) é um dos pontos em comum entre o sistema socioeducativo e o prisional no país. Superlotação, insalubridade, ócio, falta de separação por idade ou delito valem tanto para as cadeias que recebem adultos quanto para o modelo que pretende recuperar jovens infratores.
Há superlotação em unidades de 17 estados. No Maranhão, a taxa de ocupação é de 886,5% — para cada vaga, há oito internos. Depois, surge Mato Grosso do Sul, onde 859 jovens vivem no espaço previsto para 235. Os dados, de 2014, integram o relatório mais atualizado sobre o sistema socioeducativo no país, feito pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e obtido com exclusividade pelo GLOBO.
Em inspeções a 434 unidades de privação de liberdade (82,5% das existentes), o CNMP classificou 39,1% como insalubres: faltam higiene, conservação, iluminação e ventilação adequadas. Essas condições e a superlotação têm levado juízes a não aplicar medidas de internação. Há 23.658 jovens entre 12 e 21 anos privados de liberdade no país.
— Num cenário péssimo, os juízes pensam: “vou mandar esse garoto de 12, 13 anos para um local nessas condições?” Eles acabam determinando outra medida — diz a juíza Maria Roseli Guiessmann, presidente da Associação Brasileira dos Magistrados, Promotores e Defensores Públicos da Infância e Juventude.
Promotor da Infância e Juventude de Natal, Marcus Aurélio de Freitas Barros conta que, desde 2012, magistrados do Rio Grande do Norte vêm substituindo medidas de internação. As oito unidades socioeducativas do estado foram interditadas; sete voltaram a funcionar parcialmente.
— Quando você coloca um adolescente que praticou um ato infracional grave para conviver com um que teve medida de meio aberto, isso traz um problema sério — destaca o promotor.
Ambiente onde doenças proliferam
Responsável pelo sistema apontado como o mais superlotado do país, o governo do Maranhão informou que “está promovendo uma série de melhorias”, como o aumento de vagas.
No Centro de Internação para Adolescentes de Anápolis (GO), a 150 km de Brasília, 41 jovens dividem um espaço para 29. A unidade fica num puxadinho no 4º Batalhão da PM. Os alojamentos em nada se diferenciam de celas. Gradeado, úmido, sem ventilação e superlotado, o ambiente é propício à proliferação de doenças, diz a enfermeira responsável Elaine Sodré. No alojamento 4, todos estão gripados. Um deles, internado por assalto à mão armada, diz que a cela é escura demais e a água, fria. O banheiro não tem vaso sanitário.
— Os novatos dormem no chão — conta.
Frederico Augusto Martins, coordenador da unidade, admite os problemas, mas diz que um novo estabelecimento está em fase final de construção.
Em Formosa, o interno que usa termos próprios do mundo prisional começou a usar drogas aos 12: “maconha, cerveja e roupinol”, comprimido de uso controlado. Internado em semiliberdade por tráfico de drogas mais de uma vez, foi flagrado num assalto e levado a um centro de internação, onde reagiu a outro jovem que o ameaçou com “um espeto”.
— Passei a teresa no pescoço dele, puxei e matei — conta o garoto.
Apenas 30% das unidades separa pelo porte físico
É gritante o descompasso entre o sistema socioeducativo previsto na legislação e a realidade. Além do desrespeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), unidades para infratores do país inteiro ignoram as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade. Uma delas é a que determina a separação dos jovens por porte físico, o que evita a violência, inclusive sexual, entre os reeducandos.
Segundo a pesquisa do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), pouco mais de 30% das unidades atendem a essa determinação. Na Região Sudeste, 73% das unidades não fazem essa separação. Na Região Sul, o percentual de unidades que desrespeitam a regra é de 68,9%; no Norte, 48,8%, no Nordeste, 68,8% e no Centro-Oeste, 64%.
A mistura é geral na cela onde está o jovem levado para o Centro de Internação para Adolescentes de Anápolis (GO) por ter desacatado um policial e resistido à prisão. Ele recebeu a medida socioeducativa mais leve, a prestação de serviços à comunidade, mas não a cumpriu. Por isso, foi internado. Hoje, convive com meninos que praticaram delitos mais graves, como homicídio e latrocínio.
— Sou o mais leve aqui. Meu problema é a droga. Eu era total flex, usava maconha, cocaína, crack, lança — conta.
Há um ano e três meses internado, ele passou por sucessivas crises convulsivas, atribuídas a um processo de abstinência. A unidade conseguiu uma vaga em uma clínica de Anápolis para o jovem de 17 anos, que aguarda ansioso uma autorização para começar o tratamento contra a dependência química.
NÚMEROS
73% das unidades da Região Sudeste não fazem a seperação dos menores por porte físico, uma violação ao Estatudo da Criança e do Adolescente e das Regras Mínimas da ONU para Proteção dos Jovens Privados de Liberdade.
16,1% das unidades do país fazem a seperação dos menores por ato infracional. O objetivo dessa medida é evitar que haja troca de experiências de jovens com diferentes históricos.
Sentenciados convivem com provisórios
Outra norma burlada por 55,2% das unidades pesquisadas pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) é a que prevê a separação rigorosa de menores apreendidos em situação provisória dos já sentenciados. As unidades do Centro-Oeste aparecem com mais alto percentual com relação ao descumprimento dessa regra: 72% não separam os adolescentes internados de acordo com a sua situação processual. O Sudeste tem o mais baixo percentual, com 47,5%.
A pesquisa indicou ainda que só 16,1% das unidades do país fazem a separação por ato infracional, cuja ideia é evitar a troca de experiências entre adolescentes com histórico infracional bastante diverso. Segundo a pesquisa do CNMP, 54,6% dos estabelecimentos alegaram que não tinham espaço para fazer as separações dos jovens seguindo as regras.
Ao menos 63% das unidades socioeducativas ignoram a regra que determina número máximo de 40 adolescentes em cada estabelecimento de internação. Além de evitar o modelo de grandes complexos e incentivar a atenção individual, a ideia é tornar o sistema mais pulverizado, garantindo a proximidade da família.
A realidade, porém, é outra. Pelo menos 30,3% dos menores infratores do país estão internados em centros distantes da casa deles ou dos pais. Situação de um jovem que cumpre medida socioeducativa por homicídio em Anápolis, a 400 km de Caiapônia, cidade goiana onde vive a família. O pai o visita de dois em dois meses.
Uma opção melhor para os parentes dele seria Goiânia, mas não havia vagas. O garoto de 17 anos conta que vendia drogas. Quando foi cobrar um cliente, o homem o ameaçou de morte. Ele reagiu com uma faca, matando-o.
— Boto fé que vou dar conta de trabalhar com meu pai, ele é torneiro mecânico — planeja o jovem, esperando um futuro melhor após ser solto.
Dividir os internos por idade é outro requisito legal, cumprido por apenas 23,7% das unidades. No Nordeste, esse percentual chega a 35,4% e no Centro-Oeste a 32%.
'É um tratamento muito indigno’
Por que o sistema socioeducativo da vida real é tão distinto do previsto no ECA e na lei que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, em 2012?
GENY BARROSO MARQUES: Há uma despreocupação dos estados e dos municípios em cumprir a legislação. Em muitos locais, foram ajuizadas ações pelo Ministério Público ou Defensoria Pública para reforma ou construção de unidades. Um exemplo é o Ceará e o Rio Grande do Norte. Mesmo com sentença judicial, os estados não entregam as unidades novas. Por outro lado, tem o descaso dos municípios, responsáveis por políticas básicas de apoio ao egresso ou de medidas em meio aberto.
Há antipatia da sociedade em relação à melhorias no sistema socioeducativo ou prisional?
Sim. Não estou falando que os adolescentes precisam estar num local de luxo. As pessoas, muitas vezes, quando me ouvem falando, respondem: “mas eu não tenho tal coisa na minha casa”. Convido as pessoas a entrarem numa unidade de internação e verem como vivem esses adolescentes. E pensar se, naquelas condições, a pessoa também não participaria de um movimento de rebelião. É um tratamento muito indigno em parte das unidades do país, não em todas.
Fonte: O Globo