Voltaire é mais um personagem da História que foi perseguido e viveu boa parte de sua vida ora tendo de se esconder, ora estando preso, por lutar para que os homens, em especial os líderes, agissem e pensassem pela razão. Suas obras, em diversos gêneros, — estudiosos da literatura contam aproximadamente 60 de grande repercussão e alcance, além de 20 mil cartas e panfletos que escreveu — eram quase na totalidade críticas políticas, religiosas e ao comportamento da sociedade de sua época.
Já em 1768 — no século 18 — numa clara demonstração de suas ideias reformistas e iluministas, ele almejou em uma delas, A Princesa de Babilônia, a atualização e a justa aplicação das leis. Suas críticas sugeriam uma uniformização que seguisse os modelos de países onde eram incontestáveis a justiça, a igualdade e, ao mesmo tempo, a tolerância.
O intento exposto pelo francês na fictícia história de amor entre a princesa Formosante e o pastor Amazan simplesmente embalava a proposta de Montesquieu, de 20 anos atrás, em O Espírito das Leis, de uma divisão emancipadora dos poderes, em busca do equilíbrio e a fim de eliminar injustiças e o abuso de poder, onde quer que existissem, inclusive no Judiciário. Aristóteles, filósofo da Grécia Antiga, também esboçou algo bem próximo desse modelo de Estado, na obra A Política.
O sistema, pouco a pouco, foi implantado, e a manutenção dos órgãos distintos e independentes dia a dia vem sendo aperfeiçoada. Podemos dizer que vivemos no patamar mais próximo da plenitude da independência entre os três poderes, indispensáveis à nossa democracia. O Direito como era praticado na época Voltaireana, com julgamentos resumidos pelo autor como de “nenhuma proporção entre os delitos e as penas”, se esbarrou na figura do juiz tal qual o temos hoje. São séculos de aperfeiçoamento, de capacitação e de exemplos para se seguir.
Hoje, é perceptível como a Justiça evoluiu graças à atuação rigorosa e independente conferida às categorias que diariamente combatem o crime em suas diversas modalidades. Dentro de todo o sistema de Justiça, o juiz é o agente a quem mais deve ser garantida a independência para julgar, sem que lhe seja imposta pressão de quaisquer vertentes, sejam políticas, sociais, religiosas ou da opinião pública. Não podemos aceitar que imponham limitações ao trabalho desses profissionais burilados num arcabouço que vem sendo aprimorado ao longo dos séculos.
O sistema de Justiça proporciona ao juiz condições para, mesmo com carga de trabalho sobre-humana, alcançar a excelência nos resultados. Para tanto, existem as metas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que medem quantidade e qualidade das análises e sentenças. E, para mais uma garantia à sociedade, temos as corregedorias, que fiscalizam, orientam e, em caso de eventuais excessos ou abusos, estão a postos para punir.
No entanto, a guerra virtual nas redes sociais — fermentada pelas últimas eleições presidenciais — não se contenta em lançar injúrias apenas contra juízes e desembargadores, e levou para a mira das massas os Tribunais Superiores. A última moda adotada pela opinião pública, que se comporta como uma espécie de Voltaire inverso, é atacar direto as mais altas Cortes e ser contra as decisões individuais dos ministros e também das plenárias. Simplesmente por moda; sem preocupação se tais questionamentos lançados a bel-prazer contribuem ou não com a evolução da Justiça, da igualdade e da tolerância, como aspirava o filósofo francês que se espelhassem as sociedades.
Pela liberdade de decisão aos juízes!, ofício para o qual possuímos e dominamos o saber-fazer. Devemos combater qualquer forma de represália ou retaliação que intente influenciar nas decisões judiciais, seja por pressões políticas, interesses particulares ou da opinião pública. Deve ser resguardada ao juiz total liberdade para analisar as provas, interpretar a legislação e decidir conforme o entendimento, sempre fundamentado unicamente no ordenamento jurídico. Essa é a fórmula para se garantir uma jurisdição autônoma, ao tempo em que se assegura a igualdade de tratamento perante a lei.
Pelo fim das interferências!, para que não regridamos ao século 18, quando, segundo Voltaire: “Puniam uma leviandade de rapaz como teriam punido um envenenamento ou um parricídio. Os ociosos lançavam gritos lancinantes e no dia seguinte não pensavam mais no caso e só falavam em novas modas.” Uma pena que ultimamente a moda não muda e teima em contestar decisão de juiz.
Pela liberdade de trabalho aos juízes!, pois contra a multidão de ociosos da atualidade, dificilmente se levantará um outro Voltaire.
Patrícia Carrijo é juíza, presidente da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego) e vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).