Voltaire é mais um personagem da História que foi perseguido e viveu boa parte de sua vida ora tendo de se esconder, ora estando preso, por lutar para que os homens, em especial os líderes, agissem e pensassem pela razão. Suas obras, em diversos gêneros, — estudiosos da literatura contam aproximadamente 60 de grande repercussão e alcance, além de 20 mil cartas e panfletos que escreveu — eram quase na totalidade críticas políticas, religiosas e ao comportamento da sociedade de sua época.
Já em 1768 — no século 18 — numa clara demonstração de suas ideias reformistas e iluministas, ele almejou em uma delas, A Princesa de Babilônia, a atualização e a justa aplicação das leis. Suas críticas sugeriam uma uniformização que seguisse os modelos de países onde eram incontestáveis a justiça, a igualdade e, ao mesmo tempo, a tolerância.
O intento exposto pelo francês na fictícia história de amor entre a princesa Formosante e o pastor Amazan simplesmente embalava a proposta de Montesquieu, de 20 anos atrás, em O Espírito das Leis, de uma divisão emancipadora dos poderes, em busca do equilíbrio e a fim de eliminar injustiças e o abuso de poder, onde quer que existissem, inclusive no Judiciário. Aristóteles, filósofo da Grécia Antiga, também esboçou algo bem próximo desse modelo de Estado, na obra A Política.
O sistema, pouco a pouco, foi implantado, e a manutenção dos órgãos distintos e independentes dia a dia vem sendo aperfeiçoada. Podemos dizer que vivemos no patamar mais próximo da plenitude da independência entre os três poderes, indispensáveis à nossa democracia. O Direito como era praticado na época Voltaireana, com julgamentos resumidos pelo autor como de “nenhuma proporção entre os delitos e as penas”, se esbarrou na figura do juiz tal qual o temos hoje. São séculos de aperfeiçoamento, de capacitação e de exemplos para se seguir.
Hoje, é perceptível como a Justiça evoluiu graças à atuação rigorosa e independente conferida às categorias que diariamente combatem o crime em suas diversas modalidades. Dentro de todo o sistema de Justiça, o juiz é o agente a quem mais deve ser garantida a independência para julgar, sem que lhe seja imposta pressão de quaisquer vertentes, sejam políticas, sociais, religiosas ou da opinião pública. Não podemos aceitar que imponham limitações ao trabalho desses profissionais burilados num arcabouço que vem sendo aprimorado ao longo dos séculos.
O sistema de Justiça proporciona ao juiz condições para, mesmo com carga de trabalho sobre-humana, alcançar a excelência nos resultados. Para tanto, existem as metas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que medem quantidade e qualidade das análises e sentenças. E, para mais uma garantia à sociedade, temos as corregedorias, que fiscalizam, orientam e, em caso de eventuais excessos ou abusos, estão a postos para punir.
No entanto, a guerra virtual nas redes sociais — fermentada pelas últimas eleições presidenciais — não se contenta em lançar injúrias apenas contra juízes e desembargadores, e levou para a mira das massas os Tribunais Superiores. A última moda adotada pela opinião pública, que se comporta como uma espécie de Voltaire inverso, é atacar direto as mais altas Cortes e ser contra as decisões individuais dos ministros e também das plenárias. Simplesmente por moda; sem preocupação se tais questionamentos lançados a bel-prazer contribuem ou não com a evolução da Justiça, da igualdade e da tolerância, como aspirava o filósofo francês que se espelhassem as sociedades.
Pela liberdade de decisão aos juízes!, ofício para o qual possuímos e dominamos o saber-fazer. Devemos combater qualquer forma de represália ou retaliação que intente influenciar nas decisões judiciais, seja por pressões políticas, interesses particulares ou da opinião pública. Deve ser resguardada ao juiz total liberdade para analisar as provas, interpretar a legislação e decidir conforme o entendimento, sempre fundamentado unicamente no ordenamento jurídico. Essa é a fórmula para se garantir uma jurisdição autônoma, ao tempo em que se assegura a igualdade de tratamento perante a lei.
Pelo fim das interferências!, para que não regridamos ao século 18, quando, segundo Voltaire: “Puniam uma leviandade de rapaz como teriam punido um envenenamento ou um parricídio. Os ociosos lançavam gritos lancinantes e no dia seguinte não pensavam mais no caso e só falavam em novas modas.” Uma pena que ultimamente a moda não muda e teima em contestar decisão de juiz.
Pela liberdade de trabalho aos juízes!, pois contra a multidão de ociosos da atualidade, dificilmente se levantará um outro Voltaire.
Patrícia Carrijo é juíza, presidente da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego) e vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).
De como Itaguaí ganhou uma casa de Orates sabe quem leu o conto O Alienista. No divertido e enriquecedor texto de Machado de Assis, o personagem principal, Simão Bacamarte, é tachado pelo narrador como um "homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência".
Torrente de loucos foi o que ele, médico psiquiatra da narrativa, criou com sua idiossincrasia. No Judiciário brasileiro, a atual conjuntura impõe aos magistrados enredo que pode dar origem a história parecida.
Deus sabe o que faz!, e a magistratura se apega à necessidade de ser respeitada ao se cumprir o determinado pela nossa Constituição — prestação jurisdicional célere, efetiva — um número de processos que assegure essa celeridade na resposta estatal, mas que também resguarde a saúde dos magistrados, bem como a qualidade das decisões proferidas.
Uma teoria nova parece ter sido criada aos moldes da de Bacamarte, na realidade vivida hoje pelos magistrados. O excesso de cobrança pautada unicamente em números parece ter se esquecido de que juiz não é computador. Vidas humanas não podem ser submetidas a exigências de produções exatas. O resultado provavelmente será inexato, e o erro prejudicará certamente os magistrados.
O terror para os magistrados são o excesso de trabalho, a pressão psicológica, as constantes críticas recebidas nas redes sociais por pessoas que não conhecem o processo jurídico e muitos outros fatores. Não à toa, são assustadoramente crescentes os diagnósticos de doenças psicológicas em membros da magistratura.
A rebelião não é instrumento usual no Judiciário. Nosso histórico é de estar em concordância com uma das observações do boticário de Itaguaí, Crispim Soares, sobre o ofício de Simão Bacamarte: "a prudência é a primeira das virtudes em tempos de revolução". Preferimos, como mostram os números auferidos pelo próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ), responder com produtividade.
O inesperado é que nesses tempos modernos pouco se esteja se preocupando com a saúde mental e física dos trabalhadores do sistema de Justiça. E justamente quando a sociedade e as comunidades médicas clamam por proteção à sanidade de membros de todas as categorias.
As angústias do boticário Crispim, ao ver que o amigo Simão resolve internar pessoas em seu sanatório unicamente por decisão pessoal e baseada em seus próprios parâmetros, podem ser claramente compreendidas neste momento pela nossa classe. O trabalho será pesado para batermos as 11 metas do CNJ) para 2023. Teremos de julgar mais processos que os distribuídos; julgar processos mais antigos; estimular a conciliação; priorizar o julgamento dos processos relativos aos crimes contra a administração pública, à improbidade administrativa e aos ilícitos eleitorais; reduzir a taxa de congestionamento, exceto execuções fiscais; priorizar o julgamento das ações coletivas; priorizar o julgamento dos processos dos maiores litigantes e dos recursos repetitivos; priorizar o julgamento dos processos relacionados ao feminicídio e à violência doméstica e familiar contra as mulheres; estimular a inovação no Poder Judiciário; impulsionar os processos de ações ambientais; infância e juventude.
Dois lindos casos. Ressalto a sensibilidade do colegiado que definiu as metas quanto à inserção da 8 — relativa ao feminicídio e à violência doméstica e familiar contra as mulheres — e da 11 — sobre direitos da infância e juventude.
A restauração de uma carga de trabalho compatível com um expediente saudável para nós magistrados é necessária e urgente. Muitos foram os avanços nas últimas décadas, com as facilidades da informatização, digitalização dos processos e o trabalho remoto. Mas ainda convivemos com entraves como déficit de pessoal, diante da crescente demanda da população por seus direitos na Justiça. Entendemos que para se ter mais qualidade, é preciso que sejam criadas mais unidades judiciárias e realizados mais concursos públicos para o ingresso de novos juízes.
O assombro de Itaguaí se reflete aqui, quase 150 anos depois da publicação do conto, nos personagens desta nossa história: "Um [magistrados] fita o presente, com todas as suas lágrimas e saudades, outro [o contexto atual] devassa o futuro com todas as suas auroras".
O final do §4º, do artigo 3º da CLT, expressa que "considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição especial expressamente consignada". A se trabalhar somente nesse período resguardado pela lei maior das relações trabalhistas, será necessária uma jornada sobre-humana, esgotante, para se alcançar as metas. Os moldes que se antevê convergem para que, cada vez mais, os magistrados tenham de decidir os processos em um número mínimo de dias, de atos. E isso não é possível.
Plus ultra! é o que querem que alcancemos. Temos lutado e nos superado para ir além, mas devemos, antes de tudo, respeitar nossos limites. Mudança nos critérios para que magistrados não sejam avaliados apenas por números serão bem-vindas. Nós, magistrados, ingressamos na carreira com vontade de proferir decisões que sejam fruto de pesquisa da jurisprudência, embasadas no denominador comum do direito comparado. Só assim conseguiremos chegar ao ponto mais alto da perfeição.
Patrícia Carrijo é juíza, presidente da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego) e vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).
Durante algum tempo publiquei em minhas redes sociais vídeos em que respondia a perguntas recebidas de seguidores sobre a magistratura e, sobretudo, sobre a atuação dos magistrados. Selecionei as curiosidades mais popularescas. Dente elas, uma que me recordo, é se os juízes trabalham aos sábados, domingos e feriados.
Sim, trabalhamos aos sábado, domingos e feriados. Seja pelo rodízio entre os magistrados, para que se mantenha a prestação jurisdicional sete dias por semana, para que se possa garantir as audiências de custódia, liminares, processos urgentes, processos de família, violência doméstica, medidas protetivas e outras. Dessa forma, há uma dedicação muitas vezes integral por parte dos magistrados. Seja também pelo acúmulo de processos, que não são possíveis de ser analisados na carga horária regular de exercício do magistrado.
A tendência é aumentar essa carga horária de trabalho, visto que, todos os anos, 30 milhões de novos processos são abertos, segundo divulgado recentemente pela consultoria FTI Consulting, sobre a alta litigiosidade no país e o sobrecarregamento do Poder Judiciário. Em tempo, somos um dos países com as mais altas taxas de litigiosidade, conforme dados da World Justice Project. Por ele foi apontado que 32% dos brasileiros haviam experimentado algum problema jurídico nos dois anos anteriores a 2022, e que em 2024 chegamos ao montante de 40,1 mil processos em tramitação para cada 100 mil habitantes no Brasil, enquanto que nos Estados Unidos, por exemplo, o número é de 5,8 mil casos em tramitação por 100 mil habitantes.
O dado é assustador, mas o que mais chama atenção é que em nosso país, em média, são proferidas sete decisões por juiz por dia útil. Ou seja, nos cinco dias trabalhados regularmente, são 35, e aproximadamente 150, por mês. Cada um deles com páginas e mais páginas a serem analisadas para, posteriormente, mais páginas e páginas serem produzidas nas decisões, que são, e devem ser, únicas.
Para produzir o estudo, foram utilizados dados dos relatórios Justiça em Números e da Base Nacional de Dados do Poder Judiciário (DataJud), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Conforme esses dados, em 31 de dezembro de 2023 existiam 82,4 milhões de ações judiciais em tramitação em todos os tribunais do Brasil, sendo que destes, 35,2 milhões foram iniciados durante o ano de 2023.
Ao se analisar todo esse contexto, é triste saber que também recai aos magistrados a cobrança por mais agilidade nas decisões. É imputado a nós parte da morosidade do sistema de Justiça, mesmo estando nós submetidos a uma carga de trabalho sobre-humana, como tenho dito e reafirmado pela consultoria FTI Consulting. Estamos lidando com um sistema vagaroso, em que o tempo médio decorrido entre o início de um processo judicial e sua primeira baixa é de 3,5 anos.
Mais triste ainda é constatar que para lutar somos poucos, pois o mesmo estudo mostra que no Brasil há apenas 8,9 magistrados por 100 mil habitantes, número inferior à maioria dos países desenvolvidos europeus, como Alemanha, Portugal, Itália, Suécia, França, Espanha e Noruega.
Mas temos de ir à luta. Se somos suficientes para vencer esse 7x1 diário, temos de o ser também para as cobranças pela magistratura.
Patrícia Carrijo é juíza, presidente da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego) e vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)
O Senado Federal cumpriu com esmero todo o rito da PEC 66/2023, que dispõe sobre alterações nas regras de previdência. Mas a referida proposta já nasceu com vício de inconstitucionalidade.
Como é sabido pelas excelências, é de iniciativa privativa do presidente da República leis sobre aposentadoria, como determina a alínea “c” do inciso II do artigo 61 da Constituição vigente.
Além dos impedimentos legais, a PEC 66/2023 é um atraso ao país e provedora de desigualdade, ao propor regras mais rígidas aos servidores estaduais e municipais do que aos federais, quando aqueles buscam pela tão aguardada aposentadoria após uma vida dedicada ao trabalho. Assim, a proposta é também uma escancarada violação ao pacto federativo.
De início, a PEC propunha abrir novo prazo para renegociação das dívidas dos municípios com o regime geral e com os regimes próprios de previdência social. Ela foi aprovada para compensar a perda de arrecadação decorrente da derrubada do veto à lei que instituiu a desoneração da folha de pagamento de vários setores econômicos.
No entanto, além dos problemas técnicos de insegurança jurídica, a PEC, conseguintemente, produz alterações prejudiciais ao país, a exemplo do crescimento exponencial de demandas judiciais; aumento da idade para aposentadoria para mulheres, de 55 para 62 anos, e para homens, de 60 para 65 anos; estabelecimento de um pedágio de 100% de tempo de serviço para se aposentar; redução das pensões e também dos valores dos benefícios para quem ingressou no serviço público após dezembro de 2003; dentre outros.
Várias entidades brasileiras reagiram negativamente, dentre elas a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), por, segundo elas, a PEC possuir efeito sistêmico desestruturante do subsistema previdenciário constitucional, ao tempo em que significa uma violação aos direitos consolidados de servidores de vários entes federados. O intuito dessas entidades foi buscar o apoio da Câmara dos Deputados.
Espera-se que lá a PEC seja freada, para que, como é de regra no estado brasileiro, persista a autonomia legislativa para os entes federados poderem estipular, cada um por si, normas específicas de regime de previdência aos seus servidores. Que ela seja engavetada e que se mantenha o atual modelo democrático, em que discussões sobre reformas dos regimes próprios de previdência e os critérios para aposentadoria são realizadas pelos próprios estados, Distrito Federal ou os municípios, dentro do que norteia o Pacto Federativo Nacional.
Que não haja rompimento desse pacto social com o estado, nem a desvalorização daqueles que se dedicaram e se mantêm em constante estudo, numa vida destinada a servir à sociedade.
Patrícia Carrijo é juíza, presidente da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego) e vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)
O fortalecimento e o respeito às instituições são sinais de uma sociedade amadurecida democraticamente. Na democracia, deve-se lutar pela preservação da harmonia, autonomia e independência de cada um dos três poderes constituídos, sem nunca sequer tentar blindá-los, logicamente. A imprensa desempenha importante papel fiscalizador — é considerada o quarto poder — e, assim como os demais, é merecedora de defesa perante aos ataques que vem recebendo da opinião popular, principalmente nesta última década de massificação das ferramentas digitais.
Mas a liberdade de imprensa — aqui usando um lugar-bem-comum — jamais pode ser confundida com irresponsabilidade, ataques à reputação de instituições ou à honra de pessoas. É triste observar que de quando em quando são requentados assuntos já esclarecidos, e estes voltam com o único intuito de “lacrar” perante a opinião das massas.
Em nome da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego), que, importante lembrar, é defensora da liberdade de expressão e da imprensa livre, venho publicamente expor indignação com matérias publicadas recentemente e desde sempre contra a magistratura e alguns de seus membros.
Mais uma vez, reafirmamos que os vencimentos dos magistrados nunca excederam o teto constitucional, por, injustamente, sermos, mais infinitas vezes, vítimas de fake news sobre o tema. Mais um vez esclarecemos: as somas estudadas e mostradas em matérias publicadas pela imprensa como salário são, na realidade, recebidas por alguns membros do Tribunais de Justiça devido ao acúmulo, no mesmo mês, de valores como indenização de férias não gozadas, 13º salário, e outros direitos adquiridos a que todo servidor público ou celetista têm. Direitos de indenização não são nem nunca foram salário (subsídio) mensal — aquele que o trabalhador recebe pelos dias trabalhados de cada mês.
O Judiciário cumpre com as normativas legais em seu orçamento e pagamento dos magistrados e demais servidores. São respeitadas à risca as leis do nosso país. Embora seja independente e possua autonomia financeira, o Judiciário é guiado pela Constituição da República Federativa do Brasil. Portanto, pedimos respeito aos nossos trabalhadores, que são dignos desse tratamento como quaisquer outros.
Difamar, injuriar e caluniar perante à sociedade os juízes e juízas, guardiões da democracia, é ultrapassar limites de liberdade e ferir a honra de milhares de cidadãos. É com respeito às pessoas que se assegura reciprocidade e evolução social, pela qual tanto trabalhamos.
Patrícia Carrijo é juíza, presidente da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego) e vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).
Em casa a roda já mudou
Que a moda muda
A roda é triste
A roda é muda
Em volta lá da televisão…
(Chico Buarque)
A superexposição a que as redes sociais nos levaram exige uma análise profunda de seus danos. Assim como na crítica do tão atual cantor e compositor Chico Buarque à programação da TV, devemos voltar nossas atenções aos perigos do excesso de inutilidades que a internet fornece em sua constante programação.
Brotam no mundo virtual aberrações como vídeos de espancamentos a autores de roubo de telefones, populares reagindo a assaltos, brigas de trânsito e outras mais. Reagir a situações assim não é nem nunca foram a melhor decisão, como muito bem sempre alertam especialistas em segurança. Quando o resultado é morte os likes são infinitamente maiores. E mais esses vídeos se propagam. E enchem de orgulho os espectadores que os disseminam para ganharem muitos mais joinhas e coraçõezinhos.
No ambiente digital torna-se mais difícil se conter excessos e o que é proibido pela lei, como o cyberbullying, por exemplo. E, infelizmente, é a programação preferida de uma sociedade que necessita de educação para sua evolução enquanto sociedade, mas que, lamentavelmente, é bombardeada com o oposto na internet, seja qual for o canal em que tentar sintonizar.
Na grade, o que se vê é uma diversidade de conteúdo que vilipendia classes sociais, entidades, partidos políticos, instituições, religiões e, o mais grave, a honra das pessoas. Em que mundo estamos?
O Judiciário e seus membros são também vítimas dos achincalhamentos virtuais. Mais difícil ainda é saber que alguns casos são produzidos por membros de classes que deveriam trabalhar em favor da evolução ética e moral da nossa sociedade.
A juíza Alessandra de Cássia Fonseca Tourinho, de São Paulo, foi uma dessas vítimas. Em um recorte de um minuto e dez segundos, que viralizou, um advogado a expõe em vídeo justamente no momento em que ela se defende enquanto ele a acusa e, com dedo em riste, diz estar “dando voz de prisão contra a magistrada". Ela o havia chamado a atenção, segundo disse, por ele estar "tumultuando a audiência”.
Essa superexposição a que foi injustamente exposta a colega magistrada atenta contra os Poderes. O juiz, no exercício de sua função, é o Estado ali representado em sua figura. O juíz é imparcial e está ali para aplicar a lei, de acordo com seu entendimento — que, importante lembrar, é passível de recursos. Ele jamais deixará haver e se manifestar rivalidade entre Estado, magistrado e a parte representada pelo Ministério Público ou a OAB.
Casos como esse não podem se tornar corriqueiros, pois profissionais de todas as áreas podem ser vítimas dos "lacradores" que usam os celulares e as publicações como armas de destruir reputações construídas com dedicação e trabalho. A OAB deve estar vigilante e ser dura, assim como também devem ser os legisladores, porque essas ações atacam não só o magistrado-vítima, mas todo o Poder.
Patrícia Carrijo é juíza, presidente da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego) e vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)
A proposta da Comissão de Juristas para alteração legislativa adota a aplicação do dever geral de cuidado, com inspiração na função preventiva, como necessidade de uma parcimônia de comportamentos antijurídicos e não apenas a contenção de danos.
Trata-se de uma nova abordagem, com ferramentas que se aproximem mais de uma forma de proteção positiva, sem que isso represente o fim do juízo sobre a conduta que se reprova.
Em um desafio concentrado para o aprimoramento legislativo da vida civil, frente às novas perspectivas para a transformação social, foi aprovada a proposta de atualização do Código Civil, agora em tramitação no Congresso Nacional.
A subcomissão de Juristas responsável pelo microssistema de responsabilidade civil apresentou sugestões que visam restabelecer o papel de coordenação do Código, interagindo com outros sistemas normativos, à luz dos notáveis avanços sociais e do desenvolvimento tecnológico. A finalidade primordial é de solidificar os novos paradigmas da responsabilidade civil e manter o Código Civil como posição central no âmbito do direito privado.
Mas não é só: essa modernização possibilita oferecer critérios objetivos ao instituto da responsabilidade civil e valorizar as funções da responsabilização, situação capaz de fortalecer o sistema jurídico e a cidadania, além de estabelecer um marco orientativo doutrinário que conduza ao aperfeiçoamento de decisões judiciais, o que, por sua vez, trará maior segurança jurídica.
Em geral, os estudos sobre responsabilidade civil começam relembrando o princípio romano de que a ninguém é dado o direito de causar danos a outrem (neminem laedere). Assim, em atenção à liberdade individual, cada ação (ou omissão) praticada, traz uma consequência, de modo que a pessoa assume a responsabilidade por sua liberdade de escolha e por sua vontade.
Ao longo dos anos, houve uma abordagem do tema sob o enfoque de sua estrutura, sem que houvesse uma normatização bem clara de sua funcionalidade. No próprio Código Civil de 2002 há uma preocupação com a regra da responsabilidade contratual e da responsabilidade aquiliana, sem uma sistematização bem definida, o que retrata uma responsabilidade relacionada, sobretudo, aos problemas da propriedade e do descumprimento de obrigações.
Coube, portanto, à Doutrina e à Jurisprudência trazer contornos e alguns parâmetros para evitar decisões díspares.
Algumas dificuldades enfrentadas pelos operadores do Direito reside no modelo de subjetividade que foi adotado, pelo qual o agente só responderia se causasse dano a outrem, de maneira intencional ou ao agir com imprudência, negligência ou imperícia.
Conscientes dessas questões, a jurisprudência e a Doutrina iniciaram uma das primeiras manifestações de avanço, ao conduzir uma interpretação mais sensível às exigências da sociedade, que trouxe o surgimento da inversão do ônus da prova e da presunção de culpa, o que, por sua vez, abriu fronteiras para a objetivação da responsabilidade.
Uma abordagem civil-constitucional - lastreada na dignidade humana e na valoração social - que foi a adotada para as propostas de alteração, parte do princípio de que a estrutura dos institutos e categorias só pode ser definida com base em sua função. Isso significa que só é possível compreender a natureza de um instituto após entender para que ele serve, ou seja, qual é sua função1.
No atual modelo, a responsabilidade civil atua apenas como um mecanismo de reparação; aliás, esse é o primeiro conceito que se tem à mente quando tratamos o assunto: indenização. Isso nos levou a um debate que possibilitou verificar que a função tradicional do instituto é a reparatória, ou compensatória.
E, ao trilharmos um caminho compreensivo, é possível perceber, sem muito esforço, que a responsabilidade civil tem passado por mudanças significativas desde o seu surgimento, sobretudo no que se refere ao reconhecimento de novos valores merecedores de tutela do Estado, mesmo porque "nem todo dano é ressarcível"2.
Além disso, há uma variedade de preocupações relacionadas à (in)suficiência que a função ressarcitória tem demonstrado3, sobretudo por se revelar uma medida mais genérica, bem distante do significado de outrora, mesmo porque, não raras vezes, as consequências de condutas ilícitas ou riscos assumidos vão além do indivíduo afetado, afetando interesses coletivos e a própria estrutura social.
A alteração de conteúdo, significado e função, deve ser vista como um acontecimento natural e até esperado nos institutos jurídicos, marcados pela sua historicidade e relatividade4.
As principais democracias liberais adotam a multifuncionalidade da responsabilidade civil5, tendo em vista a mudança de paradigma do sistema de responsabilização, além da segurança jurídica e previsibilidade que traz, exatamente o que os agentes econômicos buscam, até mesmo para prefixar seus custos e calcular investimentos.
Nesse contexto, ao reconhecer o grande avanço que a sociedade contemporânea sofreu nos últimos anos, sobretudo relacionado à realidade tecnológica, somado à objetivação da responsabilidade civil e ao crescimento das hipóteses de dano, emerge a necessidade de se identificar os riscos e se verificar o papel - e a relevância - de suas funções, bem como de seus instrumentos de atuação.
A proposta de reforma manteve a primazia da função clássica de reparação - compensatória -, à luz do princípio da reparação integral, com uma abordagem que visa maior efetividade ao instituto, conforme parâmetro do "princípio da tutela efetiva".
Nesse contexto, propusemos a reforma do art. 927 e a redação de novos artigos, para a organização do fator jurídico determinante da responsabilidade - nexo de imputação -, além da identificação dos aspectos que determinam a obrigação de indenizar, o que permitiria a coexistência de regras da responsabilidade subjetiva e objetiva da ação antijurídica.
Com a ressignificação da responsabilidade civil e a ampliação da "tutela efetiva da vítima", cresce uma tendência de maior aplicação da função preventiva, tido como retrato da importância de combater de forma incisiva a prática de comportamentos considerados inaceitáveis na sociedade.
Para alguns estudiosos, a medida possuiria também um efeito didático, pois o receio "de ser tachado como culpado por descurar da adoção de medidas necessárias de prevenção de danos, pedagogicamente impele potenciais causadores de danos a uma atuação cautelosa no exercício de sua atividade econômica". (Rosenvald, 2022, p. 430).
O STJ tem enfatizado que "a função preventiva essencial da responsabilidade civil é a eliminação de fatores capazes de produzir riscos intoleráveis". (Informativo n. 574, REsp 1.371.834-PR, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti; e Informativo n. 538, REsp 1.354.536-SE, Rel. Min. Luís Felipe Salomão).
A proposta da Comissão de Juristas para alteração legislativa, adota a aplicação do dever geral de cuidado, com inspiração na função preventiva, sobretudo após o advento do Código Civil da Nação Argentina (art. 1.710), como necessidade de uma parcimônia de comportamentos antijurídicos e não apenas a contenção de danos.
Esse novo olhar certamente colocará em foco o comportamento do agente, mas em um contexto diferente do caráter punitivo da tutela negativa - reativa - do direito. Trata-se de uma nova abordagem da responsabilidade civil que intervenha antes da ocorrência do dano, com ferramentas que se aproximem mais de uma forma de proteção positiva - tutela positiva -, sem que isso represente o fim do juízo sobre a conduta que se reprova.
Nas palavras de Norberto Bobbio, "a noção de sanção positiva deduz-se, a contrario sensu, daquela mais bem elaborada de sanção negativa. Enquanto o castigo é uma reação a uma ação má, o prêmio é uma reação a uma ação boa". (BOBBIO. 2007, p. 24).
Exatamente por isso que há a necessidade de que o Código Civil reassuma esse papel de centralidade e traga definições claras para fortalecer o sistema jurídico e a cidadania, bem como assegurar os avanços sociais e tecnológicos que temos experimentado.
Foi exatamente esta a proposta de redação do art. 927-A, em uma releitura constitucional do direito civil, a fim de que a tutela positiva pudesse assumir o um mecanismo complementar à tutela negativa - amplamente conhecida, diretamente relacionada às finalidades substanciais estabelecidas na Constituição.
Não é demais lembrar que a prevenção de danos corresponde ao anseio de toda uma sociedade, principalmente quando relacionados à atividades potencialmente de risco, de modo que as decisões judiciais poderão valorizar essa tutela positiva e as medidas adotadas para evitar o dano.
Essas funções interagem entre si e se fortalecem mutuamente, possibilitando que o sistema de responsabilidade civil cumpra seu papel social, como um meio para diminuir os custos dos acidentes e promover o bem-estar da sociedade, o que, repito, se traduz em segurança jurídica.
A importância da multifuncionalidade da responsabilidade civil reside, portanto, na sua capacidade de adaptar-se às demandas de uma sociedade em constante transformação, atuando como um instrumento de regulação social. Ao reconhecer a responsabilidade civil como um mecanismo multifuncional, o direito amplia seu escopo de atuação, contribuindo não apenas para a solução de conflitos, mas também para a prevenção de danos e a promoção de uma convivência social mais harmônica e segura.
Essa releitura é fundamental para o atual momento da sociedade brasileira, quando recordamos que o estudo do direito civil, à luz da Constituição de 1988, não pode se esquivar de alguns pontos norteadores, quais sejam: (i) a superioridade e a eficácia normativa da Constituição; (ii) a integração e a complexidade do sistema jurídico; e (iii) a interpretação com propósitos práticos, somados a uma abordagem metodológica, relacionada ao pensamento pós-positivista; (iv) a consideração da historicidade dos institutos e categorias; (v) a prevalência dos interesses existenciais sobre os de natureza patrimonial; e (vi) a reinterpretação funcional.
Portanto, há uma necessidade, evidente e crucial, de se superar a natureza monofuncional da responsabilidade civil, sobretudo por uma análise constitucional e pela leitura contemporânea, de uma sociedade plural, marcada por avanços tecnológicos, como forma de nos adequar à atual realidade, como forma de reforçar a segurança jurídica frente a transformação social.
Patrícia Carrijo é juíza, presidente da Asmego (Associação dos Magistrados de Goiás) e vice-presidente da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros).
“Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”.
A reflexão é da escritora Simone de Beauvoir, em meados dos anos 1950, mas é perene. No século 21, mais precisamente no ano de 2024, as mulheres ainda precisam lutar diariamente pela validação de direitos já assegurados e pela conquista daqueles que, irrefutavelmente, deveriam estar em voga há muito tempo.
Neste mês de junho, o Poder Judiciário do Estado de Goiás vivenciou uma experiência nova, um grande passo rumo à necessária ocupação pelas mulheres de espaços que são seus, de fato e de direito. A magistrada Sirlei Martins da Costa foi a primeira desembargadora a ser escolhida pelo critério de merecimento com base na Resolução Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nº 525/2023, que visa promover a igualdade de gênero nos tribunais do país, e na Resolução Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO) nº 247/2024.
Como bem ressaltou a magistrada em seu discurso, em 150 anos de história, somente agora o TJGO soma sete desembargadoras em seus quadros, sendo que a primeira, Amélia Martins de Araújo, foi empossada quando o tribunal já contava 135 anos.
Questionada pela imprensa, Sirlei Martins da Costa observou: “Estamos acostumados a pensar a partir da mulher exercendo algumas atividades ligadas ao cuidado dos filhos, dos doentes e dos idosos da família, mas não para ocupar espaços de poder e espaços políticos.”
Essa reflexão, embora tão bem colocada, é lamentável porque revela uma sociedade ainda muito separatista, que após árdua luta concedeu à mulher o direito à formação acadêmica e à prática laboral, mas que a limita quanto ao espaço que pode ocupar e à remuneração pelo seu trabalho, quase sempre inferiores aos de seus colegas homens.
Ainda em referência à realidade de nosso TJGO, de 2018 para cá, houve aumento de 42 vagas no segundo grau de jurisdição, grande mérito da gestão do desembargador Carlos França. Entretanto, dessas 42 novas vagas, apenas duas foram preenchidas por magistradas, pelo critério de merecimento. Há estados em que 100% dos desembargadores são homens.
O relatório da Justiça em Números, do CNJ, publicado neste mesmo mês de junho, mostra que no primeiro grau o porcentual de mulheres é de 41,6%, mas no segundo grau é de 18,75%. Todos esses números expostos aqui denunciam muito mais do que a ausência de paridade de gênero no Poder Judiciário, mas ratificam que a falta de representatividade feminina em espaços de poder está diretamente relacionada à desigualdade no mercado de trabalho, à violência de gênero e aos papéis de gêneros impostos às mulheres desde crianças.
O Judiciário, como baluarte da democracia e poder fundamental para a conquista de uma sociedade mais justa e igualitária, deve protagonizar, cada vez mais, a luta pela paridade de gênero, a começar pela própria casa, que são os tribunais superiores. A representatividade feminina é salutar para que as cortes reflitam bem a realidade do nosso país e assegurem decisões equilibradas.
Mantenhamo-nos vigilantes pelo cumprimento da paridade de gênero e alarguemos os caminhos para que as mulheres cheguem de forma legítima aos espaços que lhe são de direito. E que lá permaneçam.
Patrícia Carrijo é juíza, presidente da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego) e vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).
Um sistema equilibrado de responsabilidade civil requer uma convergência entre a proteção da economia de mercado e a mais ampla tutela das vítimas de danos e da coletividade perante toda a sorte de ilícitos, em uma sociedade civil-constitucional
Após longos debates, audiências públicas e diálogos com variados setores da sociedade brasileira, a comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil enviou um conjunto de propostas ao presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, para que a matéria fosse apreciada pelo Congresso Nacional.
Naquilo que nos coube, equilibrando tradição sem deixar de lado as inúmeras transformações pelas quais passou nossa sociedade nos últimos anos, buscamos a estruturação da chamada responsabilidade civil (conjunto de normas que ditam direitos e deveres na relação entre os cidadãos), tendo em vista o estágio atual da sociedade brasileira e o que se vislumbra para as próximas décadas.
Observamos, para tanto, avanços jurisprudenciais e doutrinários, além de recentes contribuições legislativas sob o enfoque dos notáveis avanços sociais e do desenvolvimento tecnológico.
A responsabilidade civil de 2023 se encontra em um momento muito distante dos anos setenta do século XX, época em que foi forjado o Código Civil. Não se trata apenas de um hiato de cinquenta anos, porém de meio século que transformou a vida humana e os seus costumes por outros prismas, diferentes das transformações que ocorreram nos últimos dois mil anos de civilização.
Afinal, a responsabilidade civil exerce o importante papel de entregar respostas onde há “falhas” no nosso sistema jurídico. O Código Civil de 2002 é a fotografia de uma responsabilidade civil exclusivamente atrelada às patologias da propriedade e da inadimplência contratual. Contudo, hoje ela não apenas iguala conflitos patrimoniais, mas observa também efeitos danosos da violação de direitos fundamentais, direitos da personalidade e das recentes pressões oriundas das tecnologias digitais emergentes.
Em verdade, um Código Civil que pretenda modernizar a responsabilidade civil não necessita de exaurir as normas ou padrões de comportamento praticados até aqui, mas de saber compreendê-los como ponto de partida, de modo a deferir critérios confiáveis e controláveis para o necessário aperfeiçoamento das decisões de juízes e dos tribunais.
Neste sentido, a estruturação da responsabilidade civil encontra origem em duas justificativas. Primeiro: É certo que do ponto de vista estilístico e linguístico, necessitamos de um Código Civil simples e compreensível a todos cidadãos. No entanto, há uma particularidade na responsabilidade civil: o fato de ser um conjunto de normas dirigidas aos magistrados.
A maior parte das demandas cíveis no Brasil - desde os juizados especiais até os tribunais superiores - conecta-se ao tema da responsabilidade civil em sentido amplo. Se o que pretendemos é conceder segurança jurídica e mitigar a discricionariedade judicial (liberdade do juiz de decidir diante caso concreto, à luz do devido processo legal), o primeiro passo consiste em oferecer critérios decisórios objetivos para a contenção de ilícitos e reparação de danos.
Segundo: os que defendem a manutenção do status quo argumentam que a jurisprudência caminhou bastante, atualizando as defasagens normativas. Contudo, nosso sistema é o da chamada “primazia normativa”, ou seja, não contamos com a tradição de estabilidade de um sistema de precedentes.
A nossa jurisprudência, por mais que bem aplicada, é sempre um retrato pendular de um dado normativo situado no tempo. Nada melhor, em termos de segurança jurídica para cidadãos e agentes econômicos, que previsibilidade e coerência sejam o resultado da aplicação de um conjunto de normas que sinalize as regras do jogo, com firmes parâmetros de julgamento.
Diante de tais considerações, sugere-se uma reforma da responsabilidade civil concentrada em três grandes eixos: o primeiro é a sistematização dos fatores de atribuição da responsabilidade civil, ou seja, organização das fontes da obrigação de indenizar: ilícito, risco da atividade e responsabilidade pelo fato de terceiro, do animal, da coisa ou da tecnologia.
O segundo trata da organização do sistema de danos mediante o aperfeiçoamento do tratamento da indenização do dano patrimonial, como também pela expressa inclusão de critérios de aferição da indenização pela perda de uma chance.
Relativamente à violação a interesses existenciais, formata-se o gênero do dano extrapatrimonial, como uma espécie de guarda-chuvas apto a conceder ampla tutela aos bens da personalidade. Por fim, aperfeiçoa-se o critério bifásico de indenização de danos extrapatrimoniais, desenvolvido no STJ, dotando-o de base normativa.
Terceiro eixo: mantém-se a primazia da função compensatória de danos morais e do princípio da reparação integral. Todavia, na sociedade contemporânea - plural e complexa - danos não mais ostentam um perfil meramente individual e patrimonial, porém, manifestam-se como metaindividuais, extrapatrimoniais, por vezes anônimos, dispersos, catastróficos e irreparáveis. Para evitar que prevaleçam respostas incoerentes aos novos desafios que não são solucionados pela reparação de danos, consideramos a necessidade de atualizar a responsabilidade civil como um sistema de gestão de riscos. Assim, para além de uma contenção de danos, há a necessidade de uma contenção de comportamentos antijurídicos, mediante a introdução das funções preventiva e pedagógica, com seguros parâmetros de moderação de poderes judiciais, contrabalançados por uma função promocional aos agentes econômicos que investirem em governança e accountability (responsabilidade).
Um sistema equilibrado de responsabilidade civil requer uma convergência entre a proteção da economia de mercado e a mais ampla tutela das vítimas de danos e da coletividade perante toda a sorte de ilícitos, em uma sociedade civil-constitucional. Para tanto, reputamos essencial a atualização da redação do Código Civil e a harmonização entre cláusulas gerais e critérios decisórios sindicáveis, parametrizando a atuação de juízes e tribunais. É assim que conseguiremos aprimorar a prestação jurisdicional, ao encontro das necessidades de nossa sociedade atual.
Por Isabel Gallotti, Patrícia Carrijo e Nelson Rosenvald
Neste ano os aproximadamente 3.000 juízes eleitorais, dentre titulares e substitutos, serão responsáveis por conduzir e garantir a realização das eleições municipais nos 5.565 municípios brasileiros. É a celebração da soberania popular, garantia fundamental e cláusula pétrea da nossa Constituição.
A conquista do direito ao voto foi feita a duras penas por diversos dos grupos que hoje podem exercê-lo. As mulheres a pouco menos de 100 anos, em 1932; e os analfabetos, em 1985. Atualmente, nosso sistema é tão democrático que faculta o dever a menores de 18 e maiores de 16, e a quem tem mais de 70 anos ou não é alfabetizado.
O Judiciário é o poder provedor do direito de os cidadãos escolherem diretamente seus representantes. No entanto, nem todos os magistrados têm a prerrogativa de escolher seus presidentes para os tribunais regionais e estaduais. Os juízes, assim como os grupos citados, não têm poder de voto. No atual modelo, dos aproximadamente 20 mil magistrados brasileiros, apenas quase 3.000, ou 15%, — que estão como desembargadores — fazem a escolha do presidente.
A falta de participação de todos causa desconforto aos que são excluídos. Não se pretende desmerecer a importância dos desembargadores, no entanto, essa não pode ser considerada a forma ideal e igualitária, pois representa uma escolha feita por poucos em nome de todos, evidenciando a existência de camadas privilegiadas responsáveis por indicar os representantes de todo um Poder.
Algumas campanhas já foram empreendidas pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) por eleições diretas nos TJs, para que elas sejam como nos moldes das dos Poderes Executivo, Legislativo, e em órgãos como Ministério Público e Defensoria Pública. Mas entra ano e sai ano e continuamos a aguardar a morosidade dos legisladores. PECs já caducaram nas casas legislativas sem ser apreciadas ou ficaram esquecidas pelo longo caminho que têm de percorrer, unicamente pela falta de boa vontade por parte das excelências.
PEC 26
No Congresso, tramitou a PEC 187/12. Era a Diretas Já dos Tribunais. Caducou. Atualmente está em andamento a PEC 26/2022. Trocando em miúdos, queremos a aprovação de PECs afins. Assim, os presidentes dos TJs seriam escolhidos pelos votos de juízes e desembargadores, e não só pelos desembargadores, ou seja, os presidentes seriam eleitos por todos os que eles “governam”.
Novamente a cobrança é necessária, e a faremos com afinco, para findar essa injustiça que privilegia e exclui de gozo de direitos. É preciso que a magistratura nacional, formada por estaduais, federais, trabalhistas, se empenhe numa campanha que seja a definitiva, para que consigamos o êxito almejado. Para tanto, seguiremos um dos conselhos de Marco Túlio Cícero, na Carta do Bom Administrador Público: “A eloquência teve, sempre, enorme importância”.
Confiamos na atenção dos parlamentares para que a magistratura possa fazer também sua escolha democrática, assim como é nas eleições em que atuamos com tanta presteza e garantimos a realização.
Patrícia Carrijo é juíza, presidente da Asmego (Associação dos Magistrados de Goiás) e vice-presidente da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros).
Depois de 180 dias ininterruptos dedicados à atualização e modernização do Código Civil, a comissão de juristas formada pelo presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, para propor o texto da reforma da norma - e a qual integro com muita honra - concluiu seus trabalhos na primeira semana de abril de 2024.
Foram seis meses em que nos consagramos a compreender as múltiplas transformações pelas quais passou e tem passado a nossa sociedade, e que buscamos ampará-las em lei de forma justa, igualitária, em comunhão com a nossa Carta Magna. Seis meses de intensos estudos, debates, discussões, de escuta, de fala, de projeções. Seis meses em que pensamos dia e noite no presente e futuro da nossa sociedade, e que sentimos a honra e o peso de representá-la, atender aos seus anseios e desenhar seu horizonte.
Nesse período, nos reunimos em encontros, audiências públicas e recebemos 280 sugestões da sociedade. E, já de início, alcançamos um feito histórico: pela primeira vez, juristas mulheres participaram da elaboração do Código Civil.
É preciso ressaltar que a norma vigente começou a ser elaborada no final da década de 1960, ou seja, já se passaram 50 anos, se contarmos o tempo de tramitação e aprovação. De lá pra cá, vivenciamos transformações que talvez nem imaginássemos.
Tínhamos uma sociedade brasileira muito diferente do que temos hoje. Uma sociedade que experimentava o advento da internet e hoje lida diariamente com a Inteligência Artificial, para citarmos apenas uma das grandes mudanças. Portanto, faz-se extremamente necessário regulamentar tais transformações e, como bem pontuou o ministro Luis Felipe Salomão (STJ), presidente da comissão, o objetivo é igualar o país às legislações mais modernas do mundo.
Nessa busca, tratamos da regulamentação da inteligência artificial, dos contratos e assinaturas digitais, do direito digital à intimidade; do novo conceito de família, para incluir vínculos não conjugais, que passam a se chamar parentais; da liberdade de expressão, patrimônio e herança digital, proteção à criança; do direito dos animais. E, particularmente, coube a mim o desafio de integrar a subcomissão encarregada do eixo responsabilidade civil, movida pelo pensamento de que, se o que pretendemos é conceder segurança jurídica, o primeiro passo consiste em oferecer critérios objetivos e claros para a contenção de ilícitos e reparação de danos.
Na segunda quinzena de abril, o Senado Federal começa a discutir o anteprojeto de atualização do Código Civil. Sabemos que ainda temos muito a caminhar, e que o trajeto tem sido árduo, porque toda mudança requer aceitação e acolhimento por parte da sociedade, que é por quem trabalhamos.
No entanto, como bem entoou Milton Nascimento, “há que se cuidar do broto pra que a vida nos dê flor e fruto”. Há que se amparar a sociedade do presente e do futuro.
Patrícia Carrijo é juíza, presidente da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego) e vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)
"Estas figuras todas que aparecem, Bravos em vista e feros nos aspeitos, Mais bravos e mais feros se conhecem, Pela fama, nas obras e nos feitos.Antigos são, mas inda resplandecemCo nome, entre os engenhos mais perfeitos.Este que vês, é Luso, donde a Fama O nosso Reino “Lusitânia” chama."(Camões)
Portugal foi protagonista do mercantilismo, que perdurou dos séculos 15 ao 18 e lhe rendeu riquezas e prestígio mundial. Mas a maior joia produzida graças a esse período, pode-se afirmar, sem medo de errar, ser a obra Os Lusíadas. E seus dez cantos são conhecidos não só pelos caminhos por onde o país desbravou e explorou, mas por todos os cantos habitáveis do planeta.
E Portugal figura entre os países mais bem organizados no quesito sistema de Justiça. Participei, em Lisboa, do Encontro Internacional de Magistrados sobre Associativismo e Poder Judiciário. Foi um momento muito importante para troca de experiências de sucesso e de fortalecimento da interlocução com os operadores da Justiça portuguesa, bem como com as diretorias de associações de magistrados brasileiros e de Portugal.
Entre as obras e feitos em benefício da sociedade, o Executivo português participa, por exemplo, do custeio do Judiciário, com disposição de servidores e manutenção de prédios, fazendo com que, assim, o acesso seja mais barato para a população. Diferentemente daqui, onde tudo fica a cargo do próprio Poder.
E lá a magistratura se resplandece. Os salários são bem mais altos que os dos brasileiros. Um ministro da Corte Constitucional tem, nos vencimentos, aproximadamente R$ 100 mil mensais. Bem distante da remuneração que percebe cada magistrado brasileiro e que, infelizmente, por desconhecimento ou maledicência, é divulgada de forma errada em matérias tendenciosas que teimam em somar o vencimento mensal com os direitos adquiridos recebidos acumuladamente.
Esse erro é ainda mais grave quando se coloca na conta do Poder Judiciário o custeio de instituições como Ministério Público e Defensoria Pública, que têm orçamentos próprios.
Outro dado interessante, com os engenhos mais perfeitos, e que nos coloca em desvantagem, é que são aproximadamente 2,3 mil magistrados em Portugal (10,3 milhões de habitantes), ante cerca de 17 mil, no Brasil (que tem 219 milhões de habitantes), ou seja, são 4,4 mil e 12,8 mil habitantes por juiz, respectivamente.
E esta, que vês e vos escreve, faz questão de chamar atenção para que o volume de processos em tramitação no país lusitano, e a consequente carga de trabalho dos magistrados portugueses, é infinitamente menor do que ocorre no Brasil. Ao tempo em que, há pouco, o desembargador Nuno Matos foi eleito presidente da associação sindical de juízes do país com o compromisso, dentre outros, de promover “acesso efetivo à medicina do trabalho, protegendo-se os juízes dos riscos para a sua saúde e segurança associados à função que desempenham, nomeadamente ‘stress’ e ‘burnout’”.
Um país evoluído preza por seus magistrados e os valoriza. O Reino “Lusitânia” nos chama.
Patrícia Carrijo é juíza, presidente da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego) e vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).
Neste mês do Dia Internacional da Mulher fizemos na Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego) mais uma ação pioneira e de vasto alcance em defesa da magistratura. Desta vez, voltada à mulher magistrada. Em uma série de vídeos, elas relataram os desafios enfrentados no âmbito do Judiciário e na sociedade em geral. Foram contadas histórias por quem está há mais de dez, 20 e até 30 anos no dia a dia da magistratura.
Delas ouvimos os preconceitos enfrentados no início da carreira — e também no decorrer dela — bem como as dificuldades de conciliar carreira e vida pessoal feminina, além da disparidade do número de homens e mulheres que ingressavam na magistratura, fazendo, assim, menor a rede de apoio oferecida a elas — hoje, felizmente, esse número já está equiparado. Mas todas cumpriram com seu ofício, sem esmorecer, assim como outras milhões de trabalhadoras deste nosso país.
Foi relatado, por exemplo, que em júris de casos de assassinato, a magistrada, ali diante dos familiares da vítima morta de forma brutal, disse ter tido de segurar o choro e tirar de todas as forças a firmeza, para não demonstrar fraqueza frente ao tribunal lotado. Se um juiz chora, é notícia positiva: é humano, sensível, mas se for uma juíza, é fraca, incapaz, despreparada e outros termos pejorativos.
Uma outra, titular da Vara de Execução Penal, visitava costumeiramente um presídio com mais de 6 mil detentos. Coragem? Não. Como ela mesma disse: “É o exercício da profissão. Se eu tenho que fazer, eu vou fazer.”
Tem ainda as juízas em início de carreira. Nesse quesito, a sociedade machista e patriarcal acha até na pouca idade mais um defeito para imputar à mulher. Colegas relataram dificuldade de serem respeitadas por advogados homens. Ali, não eram suficientes a formação e aprovação no concurso para magistrada. Passei por isso até mesmo quando me candidatei à Presidência da Asmego, pois a associação já contava 52 anos de existência, e nunca uma mulher havia ocupado o cargo de presidente. A mulher magistrada precisa demonstrar e reafirmar diariamente sua capacidade e conhecimento jurídico.
O positivo é que a paga é feita com trabalho. E com resultados eficazes para os jurisdicionados e para a sociedade como um todo. Apesar de que, fora deste trabalho, a mulher magistrada quase sempre tem de se dividir — além da busca pelo empoderamento dispensada aos homens — com o cuidado com a família e criação e educação de filhos. Ou seja, o fato de ser mulher já nos impõe mais tarefas obrigatórias.
Tudo isso corrobora veladamente para que menos mulheres se inscrevam nos concursos da magistratura, e para que as já magistradas ascendam a cargos mais altos e passem a compor órgãos superiores de gestão na maioria dos tribunais — bem lá onde a maioria dos eleitores é formada por homens. Essa é a realidade nos tribunais superiores. Mas uma realidade indesejada e que vem sendo superada, pois recentemente muitos nomes garantiram essas conquistas.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por exemplo, tem se mostrado à frente desta luta, e as mulheres têm sido reconhecidas pelo merecimento profissional para cargos de destaque.
E que bom que, no longo capítulo das mulheres, as magistradas atuam incessantemente em defesa de todas nós. São vários os projetos criados por mulheres que impactam fortemente na garantia dos nossos direitos. A saber: Protocolo Sinal Vermelho, da ex-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Renata Gil; Lei Maria da Penha na Escola da desembargadora Sandra Regina (TJGO); Gibi Maria da Penha Vai à Escola, da Maria Isabel (TJDF).
Como se consta, as magistradas são mulheres que quebram barreiras diárias, promovendo justiça e inspirando futuras gerações. Que nossa dedicação e sabedoria continuem a moldar um sistema judicial mais inclusivo e igualitário. Juntas, somos fortes e imparáveis.
Patrícia Carrijo é juíza, presidente da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego) e vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).
Relatório divulgado pelo Tesouro Nacional, que compara com outros 50 os valores destinados pelo nosso país ao Judiciário, deu margem a críticas semeadas contra o Poder responsável por resguardar a democracia no nosso país.
O relatório pode até ser justo, se se olhar pelo horizonte dos direitos às liberdades, garantidos pela Constituição e assegurados pelo próprio Poder. No entanto, injusto pelo viés perseguidor aos trabalhadores daquele que é o pilar da Justiça.
O que se investe para sustentar esse pilar passa, maldosamente, a ser tachado de “gasto”. Enxerga-se nisso um evidente sinal de que utilizam apenas recortes da realidade com o rasteiro objetivo de “provar” que no Brasil — o sétimo país mais populoso e, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com mais de 30 milhões de processos novos a cada ano — se “gasta mais com o sistema de Justiça do que a média dos demais analisados.
Incrivelmente, usam a gasta artimanha de extrair dados selecionados para as comparações, no estilo “este nos serve” e “este, não”. E é uma chuva delas, que cai em solo fértil das estatísticas, porcentagens, médias e muito mais-ou-menos até chegar perante os pés e olhar lá tão alto o impressionante Produto Interno Bruto (PIB) para ser ele o referencial do cotejo. E cultivam ali os exageros, pois sem eles pode não haver plateia. E, ainda, porque, na era digital, nas críticas em que se dissimula, e se simula, se critica ainda mais.
Que a transparência é um dever dos órgão públicos, e o acesso à informação um direito da sociedade, é indiscutível. Na construção dessa ponte a mídia é peça fundamental, mas a mesma não pode servir de passagem para qualquer que seja a interferência que escancare a porteira libertadora das ideologias pessoais. Mas a excessão tem se tornado ato costumeiro. Infelizmente.
Para solucionar os mais de 30 milhões de processos, fazem-se necessários investimentos em infraestrutura no trabalho humano. E o Judiciário responde com trabalho prestado à sociedade, às vezes em volume sobre-humano, sendo o prazer do beneficiador muitas vezes maior que o do beneficiado. Os resultados são a qualidade de excelência muito bem auferidas pelo CNJ, que avalia periodicamente os tribunais do país. Por isso, exige-se investimentos, visto que seria injusto a paga ser em bronze pelo que se recebe com selos prata, ouro ou diamante.
Patrícia Carrijo é juíza, presidente da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego) e vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).
Quando eu era criança, os adultos me contavam a história de um grupo de pessoas vítimas de um acidente de avião que caiu na neve, e que foram obrigadas, após a escassez de todos os recursos, a comer carne humana para sobreviver até que se chegasse o resgate. Lembro-me de, em algumas dessas vezes, algum deles fazer a observação de que os sobreviventes tiveram de responder a processo judicial, porque “comer carne de gente, além de pecado, é crime”.
O recorte que eles usavam para entreter as crianças era da verídica história das 45 pessoas que partiram de Montevidéu, no Uruguai, a maioria jovens de um time de rúgbi, para disputar uma partida no Chile, em 1972. No caminho, o mau tempo fez com que a aeronave se chocasse com uma montanha e caísse no Vale de Las Lágrimas, na Cordilheira dos Andes. Dezesseis morreram com o impacto, e os sobreviventes tiveram de enfrentar, por mais de 70 dias, dentre outras dificuldades, frio de até 30º negativos.
Saindo da adolescência, tive contato, na faculdade de Direito, com o texto proposto pelo professor Lon L. Fuller, da Universidade de Harvard: “O Caso dos Exploradores de Cavernas”.
Nessa história, exploradores de caverna ficam presos em uma delas e, diante da impossibilidade de rápido resgate, decidem pelo jogo de dados qual deles seria morto para servir de alimento aos demais. Assim se procedeu e, após o resgate, os vencedores e sobreviventes foram processados. Aí sucedem-se as defesas e acusações, que geraram textos ricos objetos de estudo.
Arte e magistraturaSão exemplos, o primeiro verdadeiro e o segundo, fictício, de quão melindrosos podem ser os litígios que chegam aos tribunais, e aos quais juízes e desembargadores estão sujeitos a se deparar. Como expliquei, começamos a aprender a diferenciar, já na faculdade, e a não confundir o Direito com a lei, e nem esta com a Justiça. Se se cai nesse limbo, certamente se gerará uma bola de neve de decisões medíocres.
Humanizar o jurisdicionado (e o magistrado)É ofício do magistrado observar humanamente o jurisdicionado, mas sem se atrever a fazer justiça, pois nosso dever é aplicar a lei sob uma Justiça vendada, mas não imóvel, e sim sempre pronta para se defender; e estarmos conscientes de que o direito nem sempre estará expressamente contido na letra da lei, sendo necessário ir buscá-lo na analogia, nos costumes, nas jurisprudências, nas doutrinas, súmulas.
Por isso, necessitamos que haja também um olhar humano para os magistrados, que são a ponta das decisões, que devem ser, indiscutivelmente, de qualidade. Não somos máquina, nem podemos trabalhar com a exatidão das máquinas, das fórmulas, dos scripts, dos código-fontes, dos algoritmos, nem com a predominância da inteligência artificial, a exemplo do Chat GPT.
O sistema de Justiça e a sociedade que o busca clamam por criação de mais unidades judiciais, uma das soluções para a celeridade das resoluções dos processos, pois lá serão desovados, e, ainda, a realização de concurso público.
Saúde mentalAo mesmo tempo, metas criadas geram competições por alcance de selos, números. E tudo isso abala nossa saúde física e mental. É de grande importância o controle de números por órgãos correcionais, mas, em tempos de inteligência artificial para gerar demandas predatórias, inúmeros sistemas, atividades administrativas, cobrança por capacitação jurídica e busca por premiações objetivadas pelos tribunais de Justiça, esse controle não pode implicar em cobranças excessivas àqueles que trabalham diariamente por decisões que jamais devem perder, mas sim melhorar, dia a dia, a qualidade: desembargadores, juízes, assistentes e demais servidores do sistema de Justiça.
Patrícia Carrijo
é juíza, presidente da Asmego (Associação dos Magistrados de Goiás) e vice-presidente da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros).
“Da prolixidade costuma gerar-se o fastio”, muito bem grafou Miguel de Cervantes na sua extensa e mais famosa obra. Desviarei, nas andanças por essas linhas, de caminhos que por ventura levem a rifões semelhantes aos incontáveis ditos pelo fiel escudeiro Sancho Pança durante as aventuras ao lado de seu amo Dom Quixote. Mas, se novamente me permitem: “A persistência é o caminho do êxito” — Charles Chaplin.
E volto a persistir, ao escrever sobre a necessidade de aprovação urgente da Proposta de Emenda Constitucional (PEC 10/23), que trata da Valorização por Tempo na Magistratura (VTM). É sabido que ela corrigirá distorções remuneratórias, e concederá aos aposentados a paridade constitucional. Além disso, poderá ser uma das iniciativas essenciais de reparação e de reestruturação da carreira, e mecanismo de impedimento de perdas de quadros qualificados para outras do setor público ou da iniciativa privada, como, inevitavelmente, tem ocorrido nas últimas décadas.
No tocante ao magistrado em si, é a garantia de uma de suas prerrogativas, um direito legítimo ao qual todo trabalhador deve ter acesso; enfim, a VTM é o reconhecimento ao crescimento e à dedicação profissional. É por ações como esta que a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e as afiliadas, a exemplo da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego), têm trabalhado. Devemos manter a magistratura no topo das carreiras que despertam nos jovens e nos mais experientes operadores do Direito o interesse de optarem por ela como a definitiva para a vida profissional. A garantia de progressão colabora sobremaneira e pode ser determinante para essa decisão, visto que a carreira exige dedicação exclusiva, devido às imposições da Constituição Federal a seus membros.
A PEC, que contempla ainda membros do Ministério Público, é de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que apresentou o texto no início do ano passado, em substituição à PEC 63/2013, arquivada em definitivo em virtude do encerramento da legislatura. O senador tem destacado o temor de que a evasão e a falta de atrativos para os bons quadros na magistratura poderá causar no país um caos jurídico, e que o reparo via VTM significa uma forma de não diminuir o volume nem qualidade do serviço público ofertado aos brasileiros.
As associações estão no páreo e auferiram, com seus históricos de busca por soluções para demandas da magistratura, harmonioso relacionamento e abertura para constante diálogo com as casas legislativas e os executivos. Assim faremos durante todo o ano de 2024, e sempre, por esta e outras conquistas, convencidos de que nossos parlamentares seguem, além de muitos outros positivos, um dos princípios de Rosseau, em busca da evolução das relações sociais: “As boas leis permitem que se façam outras melhores; as más conduzem a piores.”
Patrícia Carrijo é juíza, presidente da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego) e vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).
Dois ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) se aposentam neste ano por idade, e mais uma vez os juízes de carreira não têm preferência na indicação e nem sequer porcentagem reservada a eles por lei. Essa é uma demanda da magistratura, e um trabalho que as associações estaduais e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) empreendem há anos. Os ministros são Ricardo Lewandowski, que deixa compulsoriamente o Supremo no mês de maio, e Rosa Weber, em outubro. Ambos completam 75 anos de idade, a máxima para se manter no posto.
Desde o início deste ano, pululam na imprensa e no meio jurídico listas com possíveis nomes para substituí-los. Nos palpites para todos os gostos, observa-se notadamente, e em sua maioria, figuras de destaque em diversas outras carreiras que não a magistratura. Isso é possível porque nossa Constituição exige do indicado, simplesmente, ter mais de 35 e menos de 65 anos de idade, notável saber jurídico e reputação ilibada.
A história de nosso STF é honrada e construída por personalidades possuidoras de alta qualificação para os cargos que ocuparam ou ocupam nesse órgão que é o topo da Justiça brasileira. Mas sem sombra de dúvidas o saber jurídico demonstrado por todas elas é inerente aos juízes de carreira. Tanto pelo escolhido ofício em si, quanto pela vivência diária possibilitada no desempenho de operadores do direito.
Está na essência dos juízes de carreira, como julgadores, os atributos necessários a desempenhar com maestria o cargo de ministro do STF. É lhes característico o poder de análise do todo, o de sustentar o equilíbrio entre as forças das partes e o de observância dos detalhes. E, certamente, manterão essas qualidades, em seu mais alto grau, também nas causas mais complexas do país.
Se não para em tempo de concorrer para essas duas já previstas, que seja alterado com urgência o Art. 101 da Constituição para que certa porcentagem das 11 vagas de ministros do STF seja exclusiva para juízes de carreira. Atualmente, existem várias propostas de redação, para o modo de escolha, de quem indica ou até para tempo de permanência e de experiência jurídica para se estar apto ao cargo. Nós, juízes de carreira, pleiteamos essa fatia exclusiva para nós.
A luta da magistratura é histórica e será mantida, até que tenhamos para determinada vaga nomes apenas de juízes de carreira — desde nas listas e bolões até à nomeação. Até lá, nos inspiremos na frase de Sêneca, em Cartas a Lucílio, na certeza de que seremos atendidos:
“A glória é a sombra da virtude, e acompanhá-la-á sempre, mesmo se esta não quiser. Mas, assim como a sombra ora precede, ora segue os corpos, a glória às vezes mostra-se visível à nossa frente, outras vezes, vem atrás de nós.”
Patrícia Carrijo é juíza e presidente da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego)
Patrícia Carrijo é juíza, presidente da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego) e vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).
Apesquisa “Perfil da magistratura latino-americana” reafirmou a persistência de antiga preocupação da magistratura brasileira: nosso País é o segundo da América Latina onde os juízes mais sofrem ameaças de morte ou à sua integridade física. Segundo os números, 50% dos magistrados relatam esse tipo de situação; 20% dizem se sentir totalmente seguros; e 15% sentem-se totalmente inseguros.
Como uma das consequências mostradas na consulta, um a cada três juízes brasileiros toma regularmente remédios para controle de estresse, ansiedade ou outra condição de saúde relacionada à atividade jurisdicional. E mais preocupante: 51% do total necessitam de tratamento psicológico ou psicanalítico desde que ingressaram na magistratura.
O levantamento é do Centro de Pesquisas Judiciais da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), em parceria com a Federação Latino-Americana de Magistrados (FLAM) e com o Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe).
Não à toa, é pleito antigo da AMB o reconhecimento da magistratura como atividade de risco, pois são profissionais que recebem frequentes ameaças ou são até assassinados no exercício da atividade jurisdicional, por estarem na linha de frente de julgamentos e das condenações de réus das áreas criminal, cível e trabalhista. E, muitas vezes, contra grandes organizações criminosas.
No Congresso Nacional tramita proposta normativa para inserir integrantes da magistratura e do Ministério Público nos termos do inciso II, do § 4º, do art. 40 da Constituição. A luta é para que seja reconhecido, na nossa legislação, o exercício dessas carreiras como realmente atividade de risco.
Tentativa semelhante foi frustrada por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que indeferiu pedido de antecipação de tutela feito pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), de que a magistratura configura atividade de risco. A decisão foi amparada no argumento de que há magistrados que desenvolvem toda a carreira em áreas de competência de pouco ou nenhum perigo.
Mas, como centelha de esperança, as decisões judiciais são mutáveis e, diante da persistência da atividade judicante demonstrar riscos como difamação, ameaças e até morte, a lei pode evoluir para assegurar aos magistrados, além de liberdade, segurança para trabalhar.
Enquanto aguardamos, medidas podem ser tomadas pelos próprios tribunais ou em parcerias com os demais Poderes. Conforme os próprios magistrados responderam à pesquisa, estão entre as soluções o aperfeiçoamento de tribunais colegiados para os casos mais graves, de modo a evitar que recaia somente sobre um magistrado a responsabilidade pelos casos; blindagem dos veículos oficiais; escoltas armadas e mudanças das sedes dos tribunais para áreas mais centrais das cidades.
Enquanto magistrada e presidente da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego), defendo adoção definitiva e a regulamentação do trabalho híbrido em todos os tribunais, na forma presencial e virtual remoto, aos moldes do que foi adotado durante a pandemia de covid-19. Uma solução que, além de economia, agilidade, dinamismo e maior produtividade, daria maior segurança aos magistrados, por ficarem menos expostos aos perigos enfrentados cotidianamente.
Patrícia Carrijo
Presidente da ASMEGO