Associação dos Magistrados do Estado de Goiás

Diferenças na sucessão do casamento e na união estável

Maria Luiza Póvoa Cruz
Juíza de direito aposentada; advogada e presidente do IBDFAM-GO

Diferenças na sucessão do casamento e na união estável


O marco da união estável como entidade familiar foi a Constituição Federal de 1988. Após, no afã de dar plena eficiência ao exercício de direitos, o legislador editou a Lei nº 8.971/94 e a Lei nº 9.278/96.


Foi tempo de paz. O juízo das varas de família, nos julgamentos, davam a proteção legal para os companheiros observando a razoabilidade, conforme os direitos já garantidos aos cônjuges.


Porém, o Código Civil de 2002 mudou o tempo, desafinou com a Constituição e as leis, trouxe retrocesso a quem vive em união estável. Seu único artigo sobre o direito sucessório do companheiro (1.790) feriu os princípios constitucionais da dignidade e da igualdade de quem é figura relevante para entidade familiar brasileira atual.


O local onde o Código situou o companheiro anuncia a desigualdade: no título “Da Sucessão em Geral”; quando deveria estar no Capítulo da Ordem de Vocação Hereditária, ao lado do cônjuge (artigo 1.829).


O cônjuge é a estrela do direito sucessório. Tem status de herdeiro concorrente com os descendentes (condicionado ao regime matrimonial), com os ascendentes (independente de regime matrimonial); e, se ausentes, herda na totalidade. É, ainda, herdeiro necessário (artigo 1.845), não pode ser afastado da herança, salvo por indignidade ou deserdação.


Quanto ao companheiro, o legislador lhe privou dos direitos conquistados. Ele, para herdar, percorre toda Ordem da Vocação Hereditária, concorrendo com os descendentes; na ausência desses, com ascendentes e colaterais. Ainda, há o limite aos bens onerosos, adquiridos na vigência da união, e um sistema de fixação das cotas hereditárias em supremacia aos vínculos sanguíneos.


A desigualdade não se justifica, mas se explica.


O projeto do Código Civil atual é de 1975, e o anterior a ele não protegia a união estável em lugar algum. Dessa forma, trazê-la para o Código Civil, mesmo em desvantagem, era avanço. Mas a Constituição de 1988 andou mais rápido, adiantou os passos, igualou o companheiro ao cônjuge. Aí, em 2002, o artigo 1.790 do Código Civil nasceu velho.


Felizmente, magistrados, numa visão civil constitucional do ordenamento jurídico, têm afastado a aplicabilidade do artigo 1.790 do Código Civil, pela flagrante violação aos princípios constitucionais mencionados. Entretanto, há os aplicadores do direito que, sob uma ótica civilista, entendem que a não aplicação do artigo 1.790 do Código Civil faria julgados contra legem.


Se o julgador for constitucionalista, o companheiro poderá herdar como o cônjuge; se for civilista, herdará só os bens onerosos, sob a “mira” do artigo 1.790 – terreno movediço.


Com respeito às opiniões contrárias, é necessária uma visão principiológica do intérprete da lei para afastar de pronto a aplicabilidade do artigo 1.790, trazer a paz ao jurisdicionado e ao ordenamento jurídico.


Significa superar a letra fria da lei, herança do positivismo, para fazer valer os princípios, cada vez mais revestidos de força normativa imprescindível para a aproximação do ideal de Justiça, e que a Constituição elegeu como fundamentais.


A Constituição de 1988 consagrou a dignidade da pessoa humana – vértice do Estado Democrático de Direito – como princípio fundamental, e estabeleceu como objetivo fundamental “promover o bem de todos, sem preconceitos e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º, inciso IV)”.


Ora, união estável e casamento sedimentam-se na vontade, afeto e comunhão de vida.


Diferenciam-se pelo modo de formação, nada mais. Assim, nas sucessões, ao companheiro deve-se aplicar o regime jurídico do cônjuge, em igualdade.


O tratamento desigual para a sucessão do companheiro pode e deve ser solucionado pela jurisprudência e doutrina, no andar dos valores da sociedade; até que as alterações legislativas aprimorem o texto legal.


E aqui fica o registro: quando o legislador claudica, o ônus recai sobre o julgador. De consequência, ao jurisdicionado, resta o dissabor.