Quais são os limites de atuação do Conselho Nacional de Justiça? Enquanto o Supremo Tribunal Federal não dá a palavra final, a cada dia surgem novos argumentos e declarações para acalorar o debate. De um lado, a corregedora nacional de Justiça, Eliana Calmon, diz que o CNJ enfrenta dificuldades para entrar nas corregedorias estaduais, que seriam omissas e ineficientes. De outro, representantes da magistratura dizem que tal impedimento nunca houve, defendem que o CNJ deveria acompanhar a atuação das corregedorias e não atuar como tal, e focar nas suas atividades de planejamento estratégico do Judiciário, com todo cuidado, para não invadir a competência do Legislativo.
Em entrevista à ConJur, o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), o desembargador Nelson Calandra, afirma que o CNJ não pode julgar processos disciplinares antes das corregedorias locais, porque assim estaria tirando de classe o direito de recorrer de uma decisão. “Nós queremos duplo grau de jurisdição para nós mesmos”, explica.
A AMB é autora da Ação Direta de Constitucionalidade contra a Resolução 135 do Conselho, que uniformiza as normas dos processos administrativos contra magistrados e define as obrigações dos corregedores. Os juízes também questionam na resolução a criação da pena de remoção compulsória de desembargadores. “Para onde que vamos remover um desembargador lá no estado de Tocantins que têm um pouco mais de 10 desembargadores? Se vier uma deliberação para que eu remova o desembargador, terei que mandá-lo para a lua. Não existe esse tipo de punição na Loman”, reclama o representante da classe.
Calandra criticou outras iniciativas do Conselho, como tentar uniformizar os horários dos tribunais no país inteiro, e tratar de temas como suplementação de verba. Para ele, “o CNJ tem rompantes em que acaba subtraindo poderes que são próprios de outros poderes de Estado”. Mas nem só de críticas foi composta a entrevista do presidente da AMB. Ele elogiou a iniciativa do CNJ de padronizar a numeração de processos em todo o Brasil, e acrescentou que o Conselho pode colaborar muito para o aprimoramento do Judiciário, por exemplo, pesquisando as origens da litigiosidade e, junto ao Legislativo, definir medidas que possam descongestionar os tribunais, o que hoje representa um grande problema.
Presidênte da AMB desde o ínicio de 2011, o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Nelson Calandra, possui grande experiência no ramo jurídico e a frente de entidades representates dos magistrados. Já presidiu a Associação Paulista de Magistrados (Apamagis) e o Conselho da Associação Mercosul Pelo Estado de Direito Nas Relações Internacionais. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) é professor Emérito da Escola Paulista da Magistratura.
Também participaram da entrevista os jornalistas Lilian Matsuura e Pedro Canário.
Leia a entrevista:
ConJur — Qual é a função do CNJ?
Nelson Calandra — Os tribunais brasileiros passaram vários anos sem olhar para si mesmos, fato que acabou por gerar a necessidade de se criar o CNJ. Até então, os tribunais não enxergavam a necessidade de comunicação com as partes, por exemplo. Além disso, muitas reclamações disciplinares que tramitavam nos tribunais não eram públicas e o resultado não chegava até aquele que havia reclamado, o que lança dúvidas sobre os procedimentos disciplinares do tribunal. Entre outras coisas, esses foram motivos para o surgimento do Conselho Nacional de Justiça.
ConJur — As corregedorias não funcionavam?
Nelson Calandra — Não é só a parte punitiva propriamente dita. A falta de democratização na eleição das cúpulas dirigentes dos tribunais faz com que muitos magistrados sem vocação assumam estas posições sem estarem habilitados. Esses colegas vão ali quase que carregar uma cruz, o que provocou uma defasagem administrativa em todo Brasil. Para piorar, a Emenda Constitucional 45 “implodiu” a estrutura dos Tribunais de Alçada, que eram avançados e modernos. A ideia, quando isso aconteceu, era de minimizar os custos e maximizar os resultados. De fato, a reforma conseguiu de algum modo minimizar custos, mas com relação à maximização dos resultados, as coisas ficaram mais complicadas do que imaginaram. Essa é a diferença entre o planejado, o sonhado e o executado.
ConJur — Diante disso, qual deve ser o papel do CNJ?
Nelson Calandra — O CNJ surge com uma forma de organizar administrativamente os tribunais, criando metas a serem cumpridas, comunicando aqueles que reclamam, dando acesso a estes sobre as reclamações, sobre as falhas no serviço público, entre outros procedimentos, e isso é normal que possa ocorrer. O Conselho, hoje em dia, tem um papel muito marcado pela sua atividade de correição, de corregedoria. Mas essa não é a espinha dorsal do CNJ. Ele foi criado, com uma função de planejamento, de auxiliar os tribunais, de criar uma política uniforme para a Justiça de todo país.
ConJur — E como o senhor avalia a atuação do CNJ nessa função administrativa, estratégica?
Nelson Calandra — Gestão é algo extremamente complexo. Todo gestor tem seus impulsos. Durante minha vida em consultoria jurídica e auditoria de grandes empresas aprendi que nem tudo que queremos, podemos fazer. O CNJ tem rompantes em que acaba subtraindo poderes que são próprios de outros poderes de Estado. Por exemplo, quando resolveu tratar de suplementação de verbas a nível federal e de uniformização de horário de funcionamento dos tribunais em todo país.
ConJur — Qual foi o rompante do CNJ ao tratar da suplementação de verbas?
Nelson Calandra — A suplementação de verba é uma dotação extraordinária que um tribunal reunido em uma composição plena solicita. O juiz disso é a Câmara e o Senado, e lá na derradeira via a presidente da República, e não o CNJ. Quando o Conselho foi criado, já existia todo um sistema engendrado pela Constituição, portanto, ele precisa se adequar a essas normas.
ConJur — E com relação à uniformização dos horários?
Nelson Calandra — A uniformização de horários para todos os tribunais do país é matéria de organização judiciária, que pode ser normatizada em cada tribunal brasileiro. Se for para fazer uma lei que deva valer em todo o país, a iniciativa tem que ser do Supremo Tribunal Federal, com a concordância da Câmara Federal, do Senado e da presidência da República.
ConJur — O problema, então, é a falta de competência do CNJ para tomar certas medidas administrativas ou o conteúdo das suas determinações?
Nelson Calandra — Como se não bastasse a falta de competência para impor horários, essa norma criada pelo CNJ está em confronto com o que é o Brasil. Por exemplo, na Paraíba, o TRT é totalmente informatizado, e às 15h30 os tribunais encerram o seu expediente aberto. A partir desse horário, passam a funcionar em um sistema que quase não consome energia. A ordem que o CNJ deu para o Tribunal da Paraíba, e para o Tribunal de Mato Grosso também, implicaria em um aumento não previsto de 620% na conta de energia elétrica. Em qualquer tipo de determinação, é sempre necessário considerar os custos envolvidos.
ConJur — Por outro lado, antes de o CNJ definir esse tipo de regras, questões como esta não entravam na pauta do Judiciário. Não é necessário um órgão que realmente pense nestas questões?
Nelson Calandra — Sim, mas não com essa metodologia. O CNJ não deveria baixar uma norma, porque ele não tem competência legislativa. Ele deveria encaminhar uma proposta para a Câmara, ou ao Senado, para que lá o tema fosse debatido.
ConJur — Foi também por meio de uma resolução que o CNJ decidiu que os tribunais do país deveriam padronizar o número dos processos. Nesse caso, o senhor acredita que o Conselho ultrapassou a sua competência?
Nelson Calandra — Não. Essa é uma boa prática.
ConJur — Nesse caso, uma lei aprovada pelo Congresso não seria necessária. Qual a diferença desta situação para as outras citadas?
Nelson Calandra — Neste caso, não. É apenas uma unificação de linguagem. Assim como a unificação de linguagens de programação de computadores dos tribunais. Mas além de mandar fazer, o CNJ tem que dizer como fazer. Somente no estado de São Paulo são utilizadas cinco linguagens diferentes, e cada um dos demais estados também possuem outras linguagens sendo que nenhuma delas se comunicam.
ConJur — O CNJ poderia agir nessa questão?
Nelson Calandra — Sim. Essa é uma questão voltada à área de tecnologia que o CNJ pode tratar, planejando, solicitando, ou até mesmo ordenando aos tribunais que o façam. Trata-se nesse caso de controle da administração, não de “administrar no lugar de”.
ConJur — Em sua opinião, o CNJ excede os limites impostos pela Constituição?
Nelson Calandra — É um órgão novo, que tem como integrantes pessoas que jamais julgaram alguém. Pessoas que não têm como requisito, para ter assento no CNJ, um dia ter administrado um tribunal ou ter formação em administração de tribunais. São pessoas, algumas dentro da nossa classe, outras na advocacia e no Ministério Público, cujo único requisito básico é ter suporte político para conquistar uma cadeira naquele local.
ConJur — Mas esta formatação não é necessária já que se trata de um órgão de controle externo do Judiciário?
Nelson Calandra — Não é totalmente externo, porque nós temos uma maioria que pertence ao próprio Poder Judiciário. O CNJ, de um lado, trata de questões ligadas à administração e, de outro lado, de questões ligadas ao comportamento de magistrados. A Justiça Estadual tem apenas duas cadeiras, uma de desembargador e outra de juiz. A advocacia tem quatro, duas de advogado, uma do Senado e outra da Câmara, invariavelmente preenchidas por advogados. Vivemos esse paradoxo: aqueles que têm o maior número de processos, o maior número de juízes submetidos à competência administrativa do CNJ, tem apenas duas cadeiras. Muitas vezes falta para ao próprio CNJ essa vivência. Precisa ter mais pessoas que possam votar e que possam falar sobre o que é ser juiz no Brasil.
ConJur — Esta questão esbarra na discussão sobre as corregedorias dos tribunais. Alguns afirmam que a corregedoria local, muitas vezes, passa a mão na cabeça de juízes, já que, no final das contas, um colega julga o outro. Ou podemos dizer que existe independência total na hora do julgamento?
Nelson Calandra — Será que existem tribunais de segunda classe no Brasil? Eu não acredito. Se tem alguém errado, é preciso apontar onde está o erro e corrigi-lo. Quem diz que as corregedorias passam a mão na cabeça de colega, nunca teve assento em uma corregedoria ou nunca leu um processo disciplinar. Os processos disciplinares em São Paulo, por exemplo, são rigorosíssimos.
ConJur — Segundo o jornal Folha de S. Paulo, somente no estado de São Paulo existem quase 500 processos contra juízes. Este não é um número expressivo?
Nelson Calandra — No estado de Goiás, os advogados sistematicamente entram com reclamação contra juiz para retardar o processo. Em uma primeira etapa na corregedoria, em uma segunda no CNJ, e se perdem o processo imediatamente eles entram com uma rescisória alegando “a”, “b” e “c” contra o juiz. Quer dizer, são falhas do sistema processual, não do juiz. Veja que o CNJ está sendo usado para dificultar a execução de julgados. Isso está documentado, no estado de Goiás, o uso da reclamação disciplinar contra o magistrado para embaraçar a execução dos julgados e para causar um tumulto dentro do processo. Nós defendemos que ninguém possa reclamar diretamente no CNJ.
ConJur — O senhor defende que o CNJ não pode julgar denúncias contra juízes?
Nelson Calandra — Qualquer brasileiro que se sinta violado nos seus direitos, que for mal atendido pelo Judiciário, pode se dirigir ao CNJ e apresentar a sua reclamação. Eu defendo que o CNJ, ao receber a denúncia, comunique a corregedoria para que esta possa processar a denúncia, e que todo o procedimento seja monitorado pelo Conselho. Havendo atraso injustificado, ou qualquer outra irregularidade no encaminhamento do processo, o CNJ tem todo direito de avocar o processo para si. Ele pode e deve acompanhar o processamento na corregedoria, mas não é possível suprimir instância. O juiz também tem direito a dois graus de jurisdição.
ConJur — A AMB tem discutido junto ao STF a atuação do CNJ. Além da possibilidade de o processo começar no Conselho, o que mais a associação está contestando?
Nelson Calandra — Entre outros tópicos, a Resolução 135. Questionamos, por exemplo, a criação da pena de remoção compulsória de desembargador. Para onde que vamos remover um desembargador lá no estado de Tocantins que têm um pouco mais de 10 desembargadores? Se vier uma deliberação para que eu remova o desembargador, terei que mandá-lo para a lua. Não existe esse tipo de punição na Loman. Nós do segundo grau, não podemos cometer pecados veniais, qualquer pecado para nós é capital, ou é aposentadoria compulsória, ou é a disponibilidade. Não existe possibilidade de repreensão.
ConJur — Quem tem competência para julgar denúncias contra desembargadores, já que as corregedorias só acompanham o trabalho dos juízes?
Nelson Calandra — É o próprio tribunal que processa, o Órgão Especial. Mas veja: no Superior Tribunal de Justiça dois ministros foram afastados, e não foram afastados pelo CNJ, foram afastados pelo próprio tribunal. Por isso, digo que o processo disciplinar não deve nunca ser secreto, mas deve necessariamente ser discreto.
ConJur — Tornar públicos os processos contra juízes não é uma forma de dar transparência ao Judiciário?
Nelson Calandra — Este é o nosso maior pecado, porque os processos disciplinares em São Paulo antes da Emenda 45 eram sigilosos, como é até hoje o procedimento contra os advogados. Qualquer procedimento disciplinar contra um advogado, por imposição do Estatuto da OAB, começa no Tribunal de Ética, com apelo à seccional da OAB, e uma revisão pelo Conselho Federal. Somente em caso extraordinários, quando o processado seja o próprio Conselheiro Federal, não cabe recurso. De qualquer modo, o procedimento é fechado, é sigiloso, e eu não vejo no Brasil ninguém dizer nada contra isso. Pelo contrário, eu vejo a OAB apoiando várias manifestações que estão na contra mão daquilo que existe em relação a ela.
ConJur — Reduzir a atuação do CNJ a questões administrativas, não seria impor ao Conselho um papel subalterno, de tratar de questões pequenas do Judiciário? Será possível o Conselho tratar de questões de grande importância sem fazer isso que o senhor chamou de “fazer as vezes do legislador”?
Nelson Calandra — Quebrar princípios leva à ruptura de um compromisso com a República e com a democracia, pode te levar para um abismo que não têm limites. Se o CNJ quer mudar uma realidade que defende a lei, a AMB está pronta a cerrar fileiras com o CNJ para debater as situações, até para provocar o Supremo para que ele tenha iniciativa de determinados projetos de lei. Mas nós não podemos dar a um órgão o poder de eliminar princípios, porque os fins não justificam os meios. Foi com base em pensamentos como esse que nós tivemos, não pouco tempo atrás, a quebra do sigilo telefônico do presidente do Supremo, sob monitoramento de outras autoridades. O Brasil tem esse péssimo costume de dizer que os fins justificam os meios. Isso é uma heresia em matéria de República e democracia. Mas há temas muito importantes nos quais o CNJ pode atuar, sim.
ConJur — Em quais, por exemplo?
Nelson Calandra — A Meta 2 do CNJ. Ela apontou um problema muito sério no nosso sistema processual penal. Convivemos com um sistema em que eu presido um júri, condeno uma pessoa a 30 anos de reclusão, e essa pessoa sai pela porta da frente junto com a família da vítima. Resultado: Na meta 2, no Rio de Janeiro, 93% dos processos por homicídio foram parar no arquivo. E porque arquivaram tantos processos? Você seria testemunha em um processo contra um grupo de extermínio que os réus desse grupo depois de condenados saem pela porta da frente junto com você? No nosso país a impunidade é grande.
ConJur — Qual a origem dessa impunidade?
Nelson Calandra — A impunidade vem de um Código de Processo Penal, onde sua excelência não é o povo brasileiro, não é o Conselho de Sentença, não é o juiz, nem o ministro, nem o promotor, nem o advogado. A sua excelência é o réu. Ou seja, em nome da hiperbolização de uma presunção de inocência, ninguém vai para cadeia antes que uma ministra do Supremo coloque a mão na cabeça e diga: “Chega. Agora você vai para a cadeia.” Como aconteceu com o Pimenta Neves, que levou 11 anos para começar a cumprir o primeiro dia de pena.
ConJur — Mas a lei diz que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Isso não respalda a liberdade antes da sentença irrecorrível?
Nelson Calandra — Exatamente. Mas se há uma acusação admitida por um juiz, se sete jurados, que julgam a pessoa em nome da sociedade, entenderam que de fato foi essa pessoa que matou, qual é a justificativa para que essa pessoa continue em liberdade até 11 anos depois, quando um ministro do Supremo disse: “Realmente, agora não tem mais recurso nenhum. Vai para cadeia.” Esse é o sistema brasileiro, que talvez funcione para os réus ricos e funciona também para as organizações criminosas, que tem recursos financeiros para impetrar recursos e para alongar os processos.
ConJur — Esse é um problema de excesso de recursos ou um problema de execução?
Nelson Calandra — Excesso de recursos e falta de efetividade das leis penais. Aqui em São Paulo, skinheads condenados há mais de 30 anos saíram pela porta da frente do fórum junto com a família da vítima. A lei que vai julgar essa organização criminosa que matou a colega Patrícia Acioli é a mesma lei que tratava de quem roubou o cavalo do meu avô na década de 40. Ou seja, ou muda ou muda.
ConJur — O senhor, então, apoia medidas para acelerar a execução, como a da PEC dos Recursos, de autoria do presidente do STF?
Nelson Calandra — Eu sou a favor do duplo grau de jurisdição, pelo menos. Qual é a grande polêmica com o CNJ? Nós queremos duplo grau de jurisdição para nós mesmos. Os advogados têm triplo grau para eles. Um advogado que comete uma infração disciplinar tem triplo grau, Tribunal de Ética, Seccional e Conselho Federal. Entendo que aquilo que o juiz disse em primeiro grau, e que foi confirmado pelo tribunal, que aquilo que os jurados disseram em uma segunda etapa de julgamento e aquilo que o tribunal estadual confirmou, seja executado, não há em lugar nenhum promessa de quádruplo grau de jurisdição. Pelo menos em matéria penal a proposta é duplo grau. Mas para o juiz aplicar a lei, ele precisa ter segurança contra possíveis represálias de criminosos. Por isso, organizamos uma mobilização no dia 21 de agosto em Brasília. Levamos à Câmara e ao Senado uma proposta de política nacional de segurança para autoridades ameaçadas. Afinal, se eu estou ameaçado, no mínimo, tenho que ter direito a proteção do Estado, a um carro blindado, a proteção pessoal no trajeto entre o Fórum e a minha casa. Não só os magistrados, como o próprio CNJ pode trabalhar na busca pela diminuição da impunidade.
ConJur — Como?
Nelson Calandra — Por exemplo, a Justiça de Trânsito no Brasil não existe. Cerca de 100 pessoas por dia morrem no trânsito brasileiro. Está aí uma ocupação para o CNJ e para a nossa Secretaria de Reforma do Judiciário. Por quê? Deve haver, como há nos Estados Unidos, cortes que julguem, não basta aplicar uma multa. Nós, juízes, opinião pública, promotores, tínhamos que nos ocupar disso. A nossa estatística de mortalidade de pessoas que são vitimadas em acidente de trânsito é uma das maiores do mundo. Nós já matamos no trânsito mais do que os europeus já mataram nas duas guerras mundiais juntas.
ConJur — Esse não é um papel do Legislativo?
Nelson Calandra — Mas nós estamos vendo acontecer e não somos apenas espectadores. O Conselho Nacional de Justiça poderia se ocupar dessa ideia.
ConJur — Esse projeto também implicaria em pensar os custos, certo?
Nelson Calandra — Pois é. Viver em uma democracia implica em custos que o cidadão paga para viver em liberdade. Em alguns países no Oriente, se uma pessoa comete um delito como esse, uma semana depois está todo mundo decapitado. Então, viver democraticamente significa julgar as pessoas.
ConJur — Dr. Calandra, quando da morte da juíza Patrícia Acioli, muitos disseram que aquele deveria ser um marco para o início de profundas mudanças no Judiciário brasileiro. Alguma coisa mudou?
Nelson Calandra — Na Itália mataram o Giovanni Falcone e o Paolo Borsellino. Um integrante da magistratura judicial e o outro do MP. Houve uma verdadeira revolução na Itália, mandaram 1.100 mafiosos para a cadeia. Aqui foi criado o sistema da prisão de segurança máxima, só que o nosso tem visita íntima, entrevista com o advogado, criminosos mandam recado de dentro para fora do presídio, matam e ameaçam o juiz que está aqui fora. A legislação brasileira infelizmente é extremamente inadequada para os dias em que vivemos. E mais, vou dizer para você o que é estarrecedor, lá em São Gonçalo, onde mataram a colega Patrícia Acioli, na frente dos filhos, as coisas estão exatamente como estavam. A nossa colega Patrícia é uma vítima visível, é uma juíza, mas antes dela milhares de pessoas no Brasil foram assassinadas. Nós temos que produzir uma alteração legislativa em que as pessoas sejam julgadas, e uma vez condenadas, sejam segregadas e passem a cumprir a sua pena. Nós não podemos fazer uma hipérbole de presunção de inocência onde isso vire impunidade.
ConJur — Embora seja um debate ainda em aberto, o que já se cogita em relação à segurança dos magistrados.
Nelson Calandra — Nós apresentamos ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, a sugestão da comissão de segurança que nós criamos no início da nossa gestão. Já tivemos uma reunião com o vice-presidente Michel Temer, no exercício da Presidência, ocasião na qual entregamos a ele as nossas reivindicações e estamos a construir essa reunião de um grupo de estudos que está albergado para poder ter algumas medidas de socorro imediato. Além disso, estamos brigando por carro blindado, segurança armada e treinamento do corpo de segurança dos tribunais. A Justiça Federal tem um corpo de segurança, já concursado.
ConJur — Embora a segurança dos magistrados possa contribuir para a diminuição da impunidade, levantada pelo senhor, esta não é uma questão ultrapassa os limites do Judiciário?
Nelson Calandra — Não se nós tivéssemos leis penais efetivas. A única ferramenta que bota ordem na sociedade chama-se caneta. Ou seja, quando o juiz dá uma sentença, a pessoa tem que cumprir, se você manda a pessoa ficar 30 anos na prisão, ela não pode ficar dois e sair para rua. Nós não podemos seguir convivendo com uma Justiça Penal que leva as raias do absurdo. Não adianta nada fazer uma lei [Lei 12.403, a chamada nova Lei de Cautelares] que manda para rua 100 mil presos e escancara as portas do cemitério. Pessoas que vêm para a sociedade sem acompanhamento, sem preparação, sem nada, são pessoas que fatalmente voltarão a dinamitar caixa de banco, farão tudo aquilo que não podem fazer.
ConJur — Por outro lado, recentemente, ao acompanhar o Mutirão Carcerário do CNJ, a ConJur observou milhares de presos que estavam em regime fechado de forma irregular. De sete mil processos que o CNJ analisou em três dias, quatro mil estavam presos por mais tempo do que deveriam estar. O Judiciário também não tem responsabilidade sobre essa situação?
Nelson Calandra — Atividade jurisdicional tem que ser exercida sempre dentro de um padrão. Pessoas imaginam que o simples decurso do tempo implica em mudança de regime. Além do decurso do prazo é preciso que haja bom comportamento carcerário, que haja a possibilidade da pessoa ir para outro estabelecimento penitenciário. Hoje vivemos em papéis totalmente invertidos, onde determinados benefícios viraram direito absoluto e o juiz que nega o benefício se torna um infrator. No Brasil criaram um estigma que colocar um monitoramento eletrônico em alguém é um constrangimento indevido, fere direitos humanos. Só não fere direitos humanos sair para rua e matar as pessoas. Então, é isso que nós temos que corrigir.
ConJur — Normalmente, quando se coloca à mesa as ponderações feitas pelo senhor, no sentido de endurecer a lei, aparecem críticas pelo ponto de vista de que isto poderia representar um retrocesso com relação aos direitos humanos. O senhor acredita que existe uma distorção dos direitos humanos no Brasil?
Nelson Calandra — Nós temos que trabalhar para observar direitos humanos reais. Penas efetivamente cumpridas, penas menores, reinserção social, trabalho obrigatório para as pessoas se reinserirem. O governo tem que investir na construção de presídios. Viver em um país com democracia plena, cumprir as regras do Estado democrático de Direito custa caro e tem que ter vontade política. Nos dias de hoje, nós não podemos viver balizados pelas coisas que nós falamos na década de 40. A internação do preso por um período tão longo, e muitas vezes sem nenhum acompanhamento não produz os frutos que são esperados. Dignidade não quer dizer mordomia, presídio não é colônia de férias.
ConJur — Já que estamos falando de cárcere, qual a sua opinião sobre a política antimanicomial?
Nelson Calandra — Para não manter alguém extremamente perigoso no regime manicomial, é preciso ter uma família acolhedora, acompanhamento médico fora do estabelecimento hospitalar. Nós não temos nem a família acolhedora, pois ninguém aceita o doente mental, nem acompanhamento do Estado. Resultado: mandamos o doente mental, que está lá cumprindo um período de segregação, para rua, porque nós abominamos a política manicomial, sem nenhum ferramenta de acompanhamento, e daí matam 17 jovens aqui em Franco da Rocha (SP). Nós temos que ter um olhar de que o Estado não é obrigado a fazer o impossível.
ConJur — O senhor agora pouco falava sobre o sistema processual penal, porque não sai uma reforma do Código Penal?
Nelson Calandra — Nós não podemos esperar a reforma do Código Penal. Há muitos brasileiros e brasileiras sendo assassinados nas ruas do nosso país. A saída é mudar essa lei imediatamente. Nós não temos tempo para esperar. 93% de inquéritos de homicídio arquivados. Isso é para alarmar qualquer país civilizado do mundo. Quando falei sobre a lei 12.403, que trata das medidas cautelares, em Portugal, eles botaram a mão na cabeça e falaram: “Calandra, pelo amor de Deus, isso é um grande equívoco. Aqui em Portugal nós fizemos e nos arrependemos.”
ConJur — Qual foi o equívoco?
Nelson Calandra — Esta lei não altera nada, apenas gera nulidade para cá e para lá. Ela obriga o juiz a fazer uma escadinha: Não dou prisão domiciliar, porque o réu não tem onde morar; não dou fiança, porque “a”, porque “b”; não dou isso e não dou aquilo. Só então que ele vai decretar a prisão preventiva, e se ele falhar em qualquer uma das fundamentações o réu vai para rua. Isso gera nulidade. Essa é a falha que meu colega português disse que existia na lei de Portugal. Hoje, a 12.403 é uma cópia da que eles revogaram.
ConJur — A Ajufe ameaça organizar uma greve caso o reajuste encaminhado na proposta orçamentária ao Congresso não seja concedido. Juiz pode fazer greve?
Nelson Calandra — Qualquer categoria pode fazer greve, mas o juiz não deve. E nós trabalhamos com a ideia do diálogo constante. Não estamos pedindo aumento de coisa nenhuma, estamos pedindo correção de perdas acumuladas. Então, acredito que o Senado e a Câmara irão resolver essa questão. Pelo menos na AMB não há no momento uma proposta de greve. O que nós propusemos foi um Mandado de Injunção pedindo que essa mora do parlamento brasileiro seja cumprida.
ConJur — O senhor concorda com as metas impostas pelo CNJ?
Nelson Calandra — As metas são necessárias. As metas nacionais são negociáveis em encontro com os presidentes dos tribunais. Mas considero que a classe deveria ser ouvida. Nós não somos ouvidos. Ou seja, esqueceram de combinar com os russos, não é? Como os franceses quando foram invadir a Rússia.
ConJur — O Justiça em Números tem mostrado que o Judiciário encontra sérias dificuldades para cumprir as metas. Como mudar essa realidade?
Nelson Calandra — Normas jurídicas claras, penas menores, construir presídios onde as pessoas cumpram suas penas com dignidade, entre outras medidas. Mas o CNJ poderia aproveitar mais o relatório. Por exemplo, não apenas indicar o índice de litigiosidade, mas a sua causa. E a partir daí conversar com o Executivo e com o Legislativo para alcançar soluções para que tantos processos não cheguem à Justiça. É preciso atuar junto ao Poder Legislativo para criar leis mais efetivas e claras. Hoje temos uma grande demanda de processos envolvendo a Previdência Social. Um cidadão procura a previdência para resolver uma questão, e para o servidor da previdência é mais fácil dizer não, do que dizer talvez ou dizer sim. Isso acaba se transformando em um processo judicial. O CNJ poderia identificar as causas desse tipo de litigiosidade em massa e trabalhar nisso.