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De aspirante a cobrador de ônibus a juiz

De aspirante a cobrador de ônibus a juiz

Conheça a história do juiz J. Leal, que chegou a Goiânia com apenas uma mochila e muitos sonhos. E, sem imaginar, acabou se tornando um magistrado apaixonado pela profissão

 

Eram nove horas do dia 12 de outubro de 1987. Cheguei. Tinha 18 anos de idade. Achei muito grande, enorme. Tudo muito limpo. Fiquei deslumbrado. De fato, pareceu-me que a Rodoviária de Goiânia era bem maior que minha cidade, Estreito (MA). 

 

Trazia uma mochila nas costas. Nela, uma lata de farofa de galinha frita com farinha de puba que minha querida mãe havia preparado. No Maranhão, ninguém viaja sem levar um “frito”. Mas a maior bagagem eram a esperança, a fé e a coragem. Sem bilhete de passagem de volta, sem dinheiro e sem parentes nesta urbe para me receber, saí à procura de emprego e de um lugar para pouso. 

 

Ao descer do Norte me senti desnorteado, como diz Belchior. A populares na rua, falava que queria trabalhar e estudar, pelo que logo fui encaminhado à Praça Universitária. Lá, fiquei sabendo da Casa do Estudante Universitário (CEU).

 

O presidente da casa, de chofre, me despachou, afirmando que ali era destinado exclusivamente a universitários. Argumentei que tinha concluído o primeiro grau, no Colégio Transamazônico, incluído aí quatro anos de verbo “to be, durante o ginasial; em vão. Mas quando percebeu que perambularia pelas ruas, me admitiu por quinze dias no quarto de hóspedes da CEU. 

 

Pela grande amizade que conquistei, fiquei trinta dias na casa, como hóspede. Enquanto ouvia queixas dos acadêmicos, pra mim aquilo era um verdadeiro paraíso. Pela primeira vez dormi em uma cama. No Maranhão, era rede. Olhava para o teto e não via caibros, nem palhas; as paredes também não eram de barro. Ali tive contato com outras mentalidades. Francisco Duarte muito me ensinou sobre a vida, um verdadeiro filósofo. Pensei: um dia ainda vou morar oficialmente aqui, tenho que ingressar numa faculdade. 

 

Consegui emprego em Aparecida de Goiânia, ganhando salário mínimo. Para não gastar com transporte, aluguei um barracão próximo. Era péssimo, bem diferente da CEU. Chão batido (onde estendi um colchão), e com problema de inundação. Precisava cozinhar, mas não possuía fogão, panelas e alimentos. Reparei um fogão abandonado; meus colegas de trabalho me presentearam com panelas usadas; meu patrão me adiantou a metade do salário futuro. Quando vi a chama do fogão acesa, disse em voz alta pra mim mesmo: agora ninguém me segura. 

 

Trabalhava oito horas por dia, e estudava à noite. Concluí o ensino médio. Também mudei de emprego, e passei a ganhar um salário mínimo e meio; senti-me rico. Mas minha riqueza demorou pouco, pois fui aprovado no vestibular da então Universidade Católica de Goiás (UCG); daí o meu “volumoso” salário era totalmente consumido pela mensalidade da faculdade de Direito. O presidente Collor tinha acabado com o Crédito Educativo. “Viver é muito perigoso”, já dizia Riobaldo, de Guimarães Rosa. 

 

Porém, um primeiro sonho se realizou: ingressei como morador oficial da CEU. Que felicidade! Tenho certeza de que Bill Gates não sentiu esse nível de felicidade quando adquiriu sua luxuosa mansão, o mais caro avião ou o mais moderno carro. A felicidade tem relação com o tamanho do recipiente; se o seu é grande demais, nunca encherá. Adoto a máxima: “rico não é quem tem muito, mas quem precisa de pouco.” 

 

Ingressei na faculdade de Direito. Meu sonho inicial era usar terno. É porque sempre fui muito magro, e acreditava que a vestimenta poderia melhorar meu visual. Morava na CEU e comia no RU (Restaurante Universitário). O problema era no final de semana, quando o RU fechava. A solução foi fazer muita amizade, e se convidar para visitar os amigos; ou, como dizíamos, “filar boia”. 

 

Durante o curso, conheci uma princesa, Zilma Dourado, tendo resolvido dois problemas, numa tacada só: a falta de afeto, e, também, de alimentação nos finais de semana. Filar boia na sogra passou a conduta dolosa, reiterada e permanente. Hoje, a princesa se chama Zilma Leal, e é mãe das minhas três filhas.

 

Colei grau em 1995. Passei a estudar muito forte para concurso. Em 1999, tomei posse no cargo de promotor de Justiça em Goiás; dois meses depois, tomei posse no cargo de juiz de Direito Substituto. Foi um choque grande de realidade. Logo, trouxe minha mãe e meu pai para morarem em Goiânia. Anos depois, eles faleceram no mesmo dia; morte natural.

 

Na verdade, no início, nunca tinha sonhado com tudo isso. Em decorrência da minha infância paupérrima, “ser juiz” transcendia às minhas aspirações; era impossível pensar nisso. Quando embarquei na rodoviária de Estreito (MA), tinha a pretensão de ser cobrador de ônibus, em Goiânia.

 

Há 25 anos no exercício da magistratura, sou todo gratidão. Gosto do que faço. É gratificante solucionar problemas das pessoas. Prestar a jurisdição efetiva é o meu mote. O fardo é pesado; o número de processos é assustador; as pressões são muitas; as metas são apertadas. Mas fazer valer o direito das pessoas me causa sentimentos nobres.  

 

Também há momentos de descontração; no Direito também há humor, despeito da austeridade exigida; basta que se observe os critérios da oportunidade e da conveniência. Outro dia, li uma peça processual muito interessante, que narrava o seguinte: “No dia tal, às tantas horas, o 'de cujus' caminhava tranquilamente pela calçada da rua em que morava, quando foi colhido pelo veículo Hilux. Embora socorrido e levado ao HUGO, em decorrência dos graves ferimentos sofridos, o 'de cujus' veio a óbito.”  Confesso que fiquei com dó do “de cujus”; na verdade, dó duas vezes. 

 

Outra pérola, que agora me lembro, foi a descrição minuciosa de um auto de arresto; cada objeto, por menor que fosse, era muito bem individualizado, embora com redação peculiar. Dentre outros: “um guarda-chuva preto para homem de cabo torto”, “uma boneca pequena da marca estrela para criança de plástico”, “um crucifixo de madeira da marca INRI”. 

 

São muitas as histórias, não dá pra contar todas aqui. Por derradeiro, devo dizer: independentemente do local em que você nasceu, a vida é triste ou a vida é bela; cabe a você decidir qual delas quer experienciar.