Associação dos Magistrados do Estado de Goiás

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Uso de juízes de 1º grau por Tribunais ameaça decisões e divide opiniões

Jornal FOLHA DE S. PAULO, edição desta segunda-feira. Reportagem de Flávio Ferreira.


Mais de 240 mil julgamentos de recursos podem ser anulados por STF e STJ


Formação de turmas com juízes de 1ª instância visa desafogar a Justiça, mas, em regra, só desembargadores podem julgar na 2ª instância


Depois de passar pela 1ª instância, a ação de pedido de verbas previdenciárias da aposentada Angelina Bóris Fávero, 78 anos, foi julgada em menos de quatro anos pelo TRF (Tribunal Regional Federal) da 3ª Região. Pelos padrões da Justiça brasileira, a decisão foi rápida.



A maior agilidade foi possível porque o tribunal de 2ª instância criou, em caráter extraordinário, turmas de julgamento com uma maioria de juízes de 1ª instância (em regra, as turmas são compostas somente por desembargadores). Porém, milhares de decisões como a que beneficiou a aposentada estão sob risco de anulação.



As cortes do topo do Poder Judiciário -STJ (Superior Tribunal de Justiça) e STF (Supremo Tribunal Federal)- podem levar à estaca zero mais de 240 mil julgamentos de recursos de tribunais de 2ª instância realizados por colegiados com mais juízes de 1ª instância que desembargadores. Esse tipo de composição de turmas julgadoras viola, em tese, as regras de organização judiciária do país.



As eventuais declarações de nulidade poderão atingir processos cíveis e penais, e resultar inclusive na libertação de condenados em ações criminais.



Fávero disse estar indignada com a possibilidade de anulação do julgamento de 2ª instância do processo que lhe concedeu benefícios previdenciários. "Quer dizer que tudo que os outros juízes [de 1ª instância] fizeram não valem nada? Estou com quase 80 anos e não posso esperar por outra decisão", afirmou a aposentada.



Sentenças recentes do STJ declaram que as turmas de tribunais formadas majoritariamente por juízes de 1º grau ferem princípio previsto no inciso 53 do artigo 5º da Constituição Federal, o "princípio do juiz natural". O dispositivo prescreve que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente".



Segundo as normas de organização judiciária, as turmas dos tribunais devem ser formadas por desembargadores, magistrados que estão no topo da carreira e foram promovidos às cortes de 2ª instância por antigüidade ou merecimento.



Até agora o STJ pronunciou-se sobre o assunto em ações penais, mas o fundamento das anulações deve ser o mesmo para processos da área cível.


Preocupação no STF



A questão deve chegar em breve ao STF, instância máxima do país, e já causa preocupação. O presidente do tribunal, Gilmar Mendes, diz que "esse é um tema extremamente delicado, porque vem sendo impugnado à luz do princípio do juiz natural. Já há pronunciamentos do STJ no sentido da inadmissibilidade dessas turmas compostas majoritariamente por juízes substitutos, pelo menos em matéria criminal. É um tema que pode ter grande repercussão, tendo em vista o pronunciamento já em centenas de milhares de processos".



O TJ (Tribunal de Justiça) de São Paulo foi a corte que mais realizou julgamentos com colegiados extraordinários -180 mil, desde 2005.



A presidente do TRF (Tribunal Regional) da 3ª Região, Marli Ferreira, diz que as decisões do STJ não devem atingir o tribunal, porque as turmas extraordinárias da corte não julgam ações de matéria penal.

Segundo Ferreira, o tribunal não criou grupos extraordinárias para julgar recursos da área penal porque esses processos envolvem questões mais "delicadas", como o direito à liberdade. A presidente do TRF defende a qualidade dos colegiados com juízes de 1º grau. "Escolhemos os juízes mais produtivos e tarimbados, que tinham mais afinidade com as matérias dos julgamentos", disse.



Procurado pela reportagem, o TJ de São Paulo não se manifestou sobre o risco de anulação de suas decisões pelo STJ.


Turmas com juiz de 1ª instância dividem opiniões


A criação de turmas nos tribunais com juízes de 1ª instância opõe defensores da obediência estrita aos princípios do direito e aqueles que pregam a adoção de medidas excepcionais contra a morosidade do Poder Judiciário.



O desembargador do TJ de São Paulo e presidente da Apamagis (Associação Paulista de Magistrados) Henrique Nelson Calandra afirma que "as câmaras extraordinárias, como o próprio nome diz, atendem a uma ocasião excepcional. Vivemos uma situação tão difícil em relação ao volume de recursos no TJ de São Paulo, que, somente rompendo certas regras e tradições é que atenderemos a princípios importantes como o da celeridade, ou de que justiça tardia é injustiça".



Para o advogado Zelmo Benari, do Comitê de Gestão do Judiciário da OAB/SP (Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo) "é preciso abandonar o apego à lei para coibir um mal maior, que é a violação do direito à prestação jurisdicional. A eternização das causas gera um enorme descrédito na Justiça do país", afirma.



O especialista em direito penal Antônio Claudio Mariz de Oliveira diz que "o 2º grau de jurisdição existe para que se analise uma decisão do juiz de 1ª instância com mais experiência, com mais visão da jurisprudência. O desembargador é alçado a essa condição porque já fez carreira e adquiriu uma bagagem muito grande, bagagem que o juiz de 1º grau, por melhor que seja, não possui".



O professor da Escola de Direito da FGV (Fundação Getúlio Vargas) Paulo Eduardo da Silva diz que as turmas extraordinárias "servem apenas para apagar os incêndios." Silva afirma que o Judiciário deve adotar medidas para evitar o acúmulo de ações a médio e longo prazo, como a contratação de auxiliares especializados para os desembargadores.